O homem pela erma. Apesar das 9:30, a Otávio Tarquino está meio deserta. Faz frio nesta sexta-feira e o homem só, de frente com a mulher gorda e maltrapilha de pés sujos e rachados nos calcanhares. O homem desvia. Olha arregaladamente. Pediu. Mesmo não distinguindo o que fala, no enrolado do bêbado, o homem sabe que ela pediu. E pediu para beber mais uns tragos. O homem apressa o passo, evitando que ela pouse a mão, por certo fria e calejada, sobre seu braço de escriturário. Atravessa a rua. Recebera o esperado salário e tinha um objetivo. Iria montado na ilusão de classe média fazer a sua débil farra de sexta-feira. Um galeto. Num Galeto pequeno e afastado na Rua Otávio Tarquino, comer um ou dois infalíveis franguinhos e bebericar alguns chopps. Essa é a sua farra de uma vez por mês. O homem atravessando não repara no fruto da família degradada e apodrecida contando as férias do dia na penumbra da Marquise sem luz. São três pivetes. E o dinheiro, talvez esmola, talvez roubado. O homem, ainda encharcado de repulsa pelo encontro com a mulher gorda, vê um rato atravessar a rua, como ele, e entrar no bueiro. Ele entra no Galeto. Agora sente orgulho de conhecer alguma biologia. Aquele rato fora expulso da tribo por ser inútil. Ainda pensando ele faz o pedido: eu peço chopp preto, não tendo, bebo mesmo o claro. “Olha, me traz também um galeto bem tostado.” Sentado em um dos poucos lugares que sobravam depois de pedir, abre O dia sobre o balcão. O homem está só. Abre, mas não lê o jornal. Uma rápida e furtiva olhada em redor. Ele, com seus 34 anos, é uma pessoa comum, assim como sua camisa de poliéster azul e a calça creme de tergal. Solteirão, ele não confia nas mulheres, além de ser demasiado tímido para conquistas. Oprimido. Magro e baixo. Também evita conversa com estranhos. Têm sempre interesse no meio. Começou a trabalhar cedo, com os pais ainda vivos. Sempre em escritório. Há 3 anos passou a ser funcionário da Fazenda, onde foi logo premiado com apelido de Pentelho, devido à excessiva admiração pelo encarregado eventual. Um oprimido. De hábitos parcos. Faz essa boemia há poucos meses, quando resolveu desgrudar um dia no mês da incansável televisão.
Ergue o braço branco de escriturário pedindo mais um. Acomoda os cotovelos enrugados no balcão e pensa nos ratos. Lembra que alguém na repartição falou da estatística no jornal. Em Belo Horizonte existem três ratos para cada habitante, em São Paulo são dois para cada um, e no Rio corre o alarmante boato de que são oito para cada pessoa. E em Nova Iguaçu? Serão quantos? Ele já vira tantos. A cabeça vagueia pelas mais longínquas e abstratas divagações. Os ratos dominando o mundo. O chopp esquenta no balcão enquanto ele se sente feliz por se achar solidário com as pessoas nesse momento de aflição e expectativa. “O mundo está em pânico e eu sou um deles”.
A porta envidraçada se abre, mostrando três caras pequenas e debochadas. São pedintes infantis. Pouco mais de 10 anos para os três. O garçom os ameaça. Eles riem risada metálica e dançam na porta já entrando para abusar. O garçom instala o pano de limpar o balcão. Eles dançam. O homem não quer ver. O garçom dá a volta. Eles correm para a rua entre gargalhadas e palavrões. O homem passa a mão na testa de escriturário. O garçom passa perto e comenta que “parecem ratos, essas pestes”. O homem pensa nos ratos que proliferam mais que coelhos. Tragédia. Um gesto do braço branco de rato de escritório: mais um chopp. Boa resistência para alguém que era quase abstêmio há bem pouco tempo. Olha pro relógio. 10:40. O último ônibus sai meia-noite e dez. Mas não posso confiar nesses motoristas. Da vez passada não teve o último. Segundo se comentava na fila, o motorista encosta o carro em algum canto para comer a cobradora. Raça ruim. Tomar cuidado para não ir de táxi outra vez. Lembra do horóscopo. Vai reler no jornal. Satisfações à noite. Dobra o jornal com um leve sorriso de esquecer dos ratos. Olha para fora e toma um susto com a cara gorda de cabelo desgrenhado e nariz amassado no vidro. É a mulher. Repara que possui alguns cabelos brancos. Os grandes olhos o procuram e da boca parece sair palavra que não pode e não quer ouvir. Desvia o olhar. Volta-se e lá está ela. Disfarça o jornal para marcar o lugar e vai ao banheiro. Vem a calhar o chopp ser diurético. Quando volta, a mulher não está mais. Certifica-se disso logo ao sair do banheiro com os olhos compridos. Alivio. Ao sentar à risca, uma olhadela para fora para ter certeza. A mulher gorda atravessa a rua cambaleando seus passos de embriagada. Numa das mãos uma lata de gordura de côco.
Senta e pede mais um. E pensa naquela lata que ela guarda resto de comida e come na hora certa. Na hora de sempre da fome. Ele pensa nos ratos outra vez. Os ratos comem coisas estragadas. Aí a associação da mulher aos ratos. Os ratos comem até Ferro. Essa mulher também comeria se a fome apertasse mais um pouco? Mas não dou esmolas para essa gente. Ela pega e bebe tudo no primeiro bar. Pega a tulipa pela metade e a seca de uma só vez. Olhos molhados do longo gole. Um imã o faz voltar à rua lá fora. Os pivetes no outro lado mostram seus olhos brancos na escuridão. Mostram também os dentes. Sorriso de demônio, ele pensa. Para esses é que não dou o mesmo. Crescem viciados. O homem não quer ver quando estoura uma briga entre eles. Os poucos fregueses se erguem. Ele não quer ver quando um passante desaparta os pivetes em sua fúria de ratos raivosos. Sua mão de rato de escritório quase treme pegando a nova tulipa. E ele pensa estar em casa vendo televisão. Pelo menos lá não é conivente com tanta miséria e violência. Lá não ouviria os protestos quando separam os garotos que se entrecominham no chão. Não precisaria ver a cara dos fregueses insatisfeitos pelo final forçado da pugna. O homem nos seus pensamentos chega quase a se arrepender de estar ali. Afinal a noite não é coisa que preste. À noite se sente mais de perto a miséria e a violência que nos rodeiam na Baixada Fluminense. O homem pensa em se mudar para a Zona Sul. Mas logo desiste de pensar. É um homem rato de escritório que é gozado pelos companheiros. “Ô, Pentelho. Ô, Pentelho, o chefe vem aí, vai fofocar”. E com o pouco que ganha para a Zona Sul, é melhor aguentar a Baixada com uma farra por mês.
É hora de ir para casa. O braço branco de escriturário pede a conta, pega o troco e deixa a gorjeta magrela. Atravessa a rua e entra no beco escuro que é o caminho mais rápido para o ponto de ônibus. Ao entrar no beco deserto e escuro, depara com a cena. Hesita. Mas não vai voltar agora. Os pivetes se assustam, mas logo o ignoram. A mulher gorda e bêbada está deitada na calçada lutando inutilmente com dois deles. Ela xinga-os com voz rouca de cachorros e filhos da puta, mas é gorda e tem agilidade prejudicada ainda mais pelo excesso de álcool. O homem passa e nada faz. Caminha passos incertos. Eles levantam seu grande e sujo vestido. O homem se detém atrás das pilastras de uma loja. O homem quer presenciar a cena de vandalismo. O homem estaria saciando suas carências e febres. E vê com coração saltitando os garotos arrancarem a calça larga, imunda nos fundilhos. Arrancam e erguem feito bandeira entre gargalhadas. A mulher xinga, grita e esperneia, e os garotos, deitados sobre aquela que poderia ser sua avó, tal a distância de idade que aparenta. Mas isso numa vida normal. Não naquela noite. Todos no mesmo nível de miséria: os garotos, a mulher estragada e o homem, que agora se masturbava diante do insólito banquete. Ele, participando dos caracteres da noite suja e violenta. Porco com adjuvante. Ali estava com sua mão de rato de escritório, manuseando o pênis, à espera de um recompensador prazer de rato. Depois iria de táxi mesmo.
Laís Sá do Amaral Junior é Poeta, Letrista, Intérprete e Jornalista. Vive atualmente em Resende.
A noite dos ratos foi publicado na coletânea Primavera relativa, de 1977 (acervo: Moduan Matus).
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