“E nem adianta tentar se esconder, pequena Emma, o bicho-papão vai te pegar… ACHEI!!!” – Às vezes somos enganados por nossos próprios instintos de sobrevivência. Num determinado tempo, um episódio marcante, por uma pessoa amada… Faz uma vida que conheço Emma Thomas! Crescemos juntos, ela e eu. Éramos assim como irmãs; almas gêmeas; carne e unha, ou coisas do gênero. Venho assistindo as suas evoluções e revoluções, infantis e adultas, como gente e mulher… Óbvio que notava as alterações psicomotoras. Sempre soube que algo não ia bem com a sua cabeça. Pelas variações de humores; os sentimentos dúbios; a falta de empatia com a família. Estavam bem claros os sinais sintomáticos de uma patologia mental, restava-nos sabermos qual ou quais – pareciam convergirem numa síndrome. Era fato já sabido pela família, isso desde pequenininha. Demorara a pegar corpo. Com quase quinze anos ainda possuía o físico de nove, dez anos, embora fosse bem alta e magra, muito magra, parecia um pau de virar tripas! O fato de ter sofrido bullying na escola fora o menor dos problemas. Aquilo lhe atingira como uma espécie de gatilho, como um subterfúgio para outros males recorrentes, uns tiques e toques e… a tal da automutilação. As marcas no corpo denunciavam o seu martírio incontrolável, sendo precoce e erroneamente diagnosticada com a tal “síndrome borderline”. Passara quase um ano em um tratamento mal conduzido e sofreu calada. Acompanhei o seu sofrimento atroz e somente a mim ela revelava o quanto de suas dores existenciais, quando estávamos a sós. Por um bom tempo vivíamos escondidas em nossos esconderijos secretos, quase sempre embaixo de coisas, das camas, das mesas, de escadas… Em nossas mentes inocentes sonhávamos e escrevíamos em nossos diários sobre a metamorfose das borboletas. Assim fomos crescendo até descobrirmos meios sutis de nos escondermos em nós mesmas. Então, fora impossível impedir a força da natureza que fez, num tempo veloz, ela simplesmente explodir em hormônios, acelerando tudo. Foi quando lhe chegou o estirão… E foi como num turbilhão, e em poucos meses suas formas se avolumaram. Mas, ironicamente, aquilo que lhe poderia tocar como uma benção divina, logo se revelara numa espécie de maldição. É que não estávamos preparadas para encararmos aquelas estranhas imagens refletidas, negando reconhecê-las. Eram as nossas próprias faces ali espelhadas… Passaríamos a odiar espelhos.
Nos entremeios de crises e sucessões de desatinos, por sua inteligência incomum ela prosseguiu com os estudos e soluções existenciais como pode, aos trancos. Formou-se com louvor, ingressando imediatamente no serviço público e logo se destacando. Porém, havia uma espécie de conspiração universal a lhe afligir. Cria nisso. Para cada vitória alcançada, desde a sua formação no ensino médio, o ingresso na universidade, a formação acadêmica, a família, o emprego, pagava um preço mortal por cada sucesso alcançado e por várias vezes pensou em se matar.
Tendo em mim a sua única amiga e confidente, revelava-me as suas coisas mais secretas. Eram sobre seus pensamentos dramáticos, ora suicidas – foram três internações para lavagens estomacais das besteiras ingeridas, inseticida na primeira vez, chumbinho na segunda e um coquetel de psicotrópicos na última – ora homicidas. As duas primeiras experiências ficaram sinistramente registradas em confidências no seu diário… Aqueles relatos em garranchos, somente a mim coube decifrá-los. Ela descreveu sobre as suas culpas como na morte dos pais abusadores, na mesma noite da comemoração de sua formatura, quando foram encontrados os corpos carbonizados pelo terrível incêndio que destruiu a antiga casa. E, meses após, o caso de um professor estuprador morto num violento acidente de carro; e, nos anos seguintes, sobre os cinco invejosos colegas de trabalho na repartição. As mortes foram realmente consideradas suspeitas, embora em nada lhe tivessem associado aos casos. Porém, em seus relatórios havia narrativas bestiais em pormenores e detalhes perversos indicando que, em todos eles, ela estivera presente nas cenas, nos últimos, pressinto-lhe arrependimentos…
É-me demasiadamente necessário que a destitua desta vontade de se culpar e se entregar. Preciso orientá-la. Lembrar-lhe, sempre, de quem somos! Cabe a mim protegê-la dela mesma. Devo deixá-la sempre segura de si e de que nada lhe poderá afligir mais do que já a tenha afligido… E de que nunca, jamais, devemos permitir que a nossa verdadeira identidade seja revelada.
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