Stella Artois

A culpa é das Estelas

Poderiam sim me culpar, afinal foi em meus braços que as duas deram os últimos suspiros de suas quase  equânimes existências; espiraram em ruidosos e apavorantes guinchados metálicos que passaram a me perseguir em  pesadelos recorrentes.  

Ok! É comum darmos nomes as coisas e eu as nomeei de: Estelamari e Maristela (exigi que fossem  gêmeas).  

E lá se foram quase doze anos dessa nossa estranha união. Também é consenso das coisas não durarem pra sempre, no caso delas, tinham prazo de validade com garantia de fábrica e bônus na troca. Mas, cometi um erro  clássico em qualquer relação, me apeguei demais e fui assim levando, mesmo após quando comecei a perceber os  primeiros vícios que, em salvaguarda para a minha própria satisfação, já que as adquiri exatamente pelo programa  em prol do reequilíbrio no meu relógio biológico, o tal do ciclo circadiano dos “3 bens: bem comer; bem cagar e  bem dormir.” Passei a atribuir as falhas aos próprios desgastes pelos tempos de uso como meros casuísmos que  poderiam muito bem ocorrer em qualquer família, até mesmo naquelas consideradas disfuncionais, pois, vivemos  tempos de conformações socioafetivas em que, hoje em dia, estão todos suscetíveis aos conflitos e redenções de  meias-culpas e deslizes, mesmo aqueles envolvendo relações Humanas-robóticas.  

O prazo cabalístico da síndrome de sete anos serve até para as inteligências artificiais e…  circunstancialmente, os fatos saíram de nossos controles-remotos, notadamente na função deletar e reinicializar  comandos, conforme ensinava o manual de instruções perdido no fundo de uma gaveta qualquer. Pequei pelas  conveniências e deixei tudo como estava, fui meio que administrando… bem… deu tilt eu sei, mas, quem há de me  julgar?!.  

Foram as circunstâncias… Ah! As circunstâncias… os imprevistos… A reeducação alimentar! Se não fosse  só o fato do churrasquinho ter sido vegano. Elas já chegaram prontas, mas eu não! Estava ali só aprendendo. É  difícil se adaptar a um novo estilo de vida, demanda tempo. Não matar qualquer animal para comer ou vestir?! É  bom! E temos a comida feita à base de tofu, e de soja, de sorgo e de nem sei lá mais o quê! E se não fossem as  gêmeas insistirem tanto naquela culinária…, não fosse a sequência dos acontecimentos, é fato: “Um bater de asas lá na China…”  

E era sempre assim, fazíamos churrasco dia sim, dia não. Enquanto uma cuidava de preparar os  acompanhamentos, a outra ficava lá na tocaia do braseiro pra não deixar queimar as falsas carnes, pois tinha de  mantê-lo sempre brando, eliminando qualquer possível labareda, enquanto fazia girar os espetos. Nos primeiros  anos tudo estava nos conformes, eis que de repente a coisa começou a desandar: por vezes ela deixava a chama  arder e parecia se esquecer de apagar, e aí então se xingava e se ria…– acho até que fazia daquilo uma espécie de  brincadeira – sobre se xingar e gargalhar; pra ter motivo de zombaria só pra mexer com a irmã; que era meio  ranzinza, mas também gostava de xingar. Talvez, também se xingasse assim pra ter do que reclamar e espezinhar a  mana. Recentemente, teria soltado uns dez de uma vez só, de carreirinha e tudo bem alto, num tom agudo e ritmado  de um som imitando metal – o tal grito medonho dos meus pesadelos. Só quem já ouviu este guinchar saberá do que  estou falando.  

As duas se completavam assim, às turras. Lá do meu canto, como pacata cobaia e refém daquelas  intemperanças, preferi ficar na minha sem me meter, acreditando serem aquelas as únicas diferenças entre as duas:  uma que gosta de rir e outra de chorar, no mais em tudo se pareciam e eram perfeitas pra mim. Vou reclamar do  quê? Nem sou muito fã de comida vegana, mas…  

Naquela tarde o tofu não tava legal. Devia estar vencido, mas elas insistiram tanto, que até mudaram a rotina, invertendo as posições, Estelamari foi para a beira da churrasqueira e Maristela por fogão; e eu, inocente, já  não sabia mais quem era quem, pois, exatamente naquele dia resolveram parar com os xingamentos íntimos. Talvez  nem fosse do tofu o estrago maior, que fosse a taioba amarga a vilã ou o óleo de gergelim de procedência duvidosa,  que dizem: “quando desanda…” Fosse o que fosse, no fundo, eu penso agora, após uns tempos de intolerância  vegetariana, que elas fizeram de propósito só para me provocar… Uma coisa não sai da minha cabeça, aliás, são  duas coisas: que devo rejeitar qualquer alimento que seja à base de tofu e nunca mais contratar serviços de  inteligência artificial.