A carne e o espírito

gárgula

Num dia de inverno, ainda coberto por uma névoa, a antiga cidade desperta, tocada por suaves raios de sol.na fachada da igreja gótica, os gárgulas espreitavam com seus olhos de pedra, os pecadores lá embaixo. O padre da cidade, senhor de meia idade, vestido com sua intangível batina negra, entra pela porta principal. Recebeu desde bem jovem, ensinamentos de padres severos e rígidos, onde foram impressos em sua alma preceitos morais e de fé, ortodoxos e inalteráveis. Para ele, não havia a carne, que era a fonte de todo mal e pecado. Evitava toques, simpatias, pois aos seus olhos seriam o começo do fim. Seguia de forma estrita suas rotinas.

Após entrar na igreja admirou a obra de Deus, através do tênue facho de luz cristalina e virginal, que cruzava o centro do templo, como também da construção religiosa, onde colunas sustentavam santos, e no teto, uma pintura celestial, mostravam anjos que rodeavam, a figura barbuda de Deus. Nas laterais da igreja, confessionários sobressaíam austeros, de cor marrom escura, pesados com os pecados acumulados por anos a fio, e que aguardavam suas novas vítimas. O dia seria duro. Era o dia de São Ambrósio, dia do santo dedicado aos perdões. O padre se preparou, e caprichou no cotonete. Era comum na comunidade que seus cidadãos, fossem à igreja para se confessar nesse dia. O padre adentrou no claustro do confessionário, e ao lado, pessoas se ajoelhavam, e começavam a comentar seus pecados. Foram muitas confissões: traições, sonhos pecaminosos, ranços, perfídias, agressões, golpes financeiros, heresias, blasfêmias, palavrões…O padre atento, tentava redimir os pecados, com obrigações de rezas, orações, Pai-Nossos… Aos poucos, no decorrer do dia, os bancos vão se enchendo de pessoas, com véus sobre a cabeça, mãos tremulas, que seguravam terços, e ouviam-se prantos, e choramingos… olhos de soslaio bisbilhotavam os arredores, buscando os pecadores, e os gestos que denunciavam seus atos passados.

Ao entardecer entra uma bela jovem que desejava se confessar, recoberta por um véu transparente se ajoelha e começa seu relato. Sua voz ao mesmo tempo meiga e sedutora, chama a atenção do pároco que observa através da grade, a beleza jovial da adolescente. Olhos castanhos, com um semblante inocente. Lábios bem desenhados. Os olhares se entrecruzam, e o padre assustado, baixa seu olhar, como que envergonhado. Afloram da fala da jovem, um relato de desejos lânguidos juvenis. O padre observa seus lábios tenros, macios, sedosos, que fazem despertar no padre, algo que nunca havia sentido. O suor pinga de sua testa, as mãos tremem. Fantasmas de carne e osso, penetram em sua espinha. Os desejos lascivos e íntimos, entorpecem e hipnotizam o padre. Sob a batina negra, se avoluma algo sem controle, que há muito havia sido esquecido. A carne domina o espírito.

Num arroubo, a jovem, com cuidado, adentra ao claustro, onde estava o padre, onde mal cabia uma pessoa, e o padre, fica estarrecido e atônito, com a chegada da jovem. ela comanda as ações. Dentro do confessionário, mal se consegue enxergar dez centímetros, ali se torna o domínio dos outros sentidos. Peles arrepiadas, pelos eriçados, toques sensuais, calores, suores, vapores, lábios molhados, mordidas carinhosas, pélvis e púbis em movimento frenético, cócegas nos pescoços, abdomens, mamilos eriçados, aspirações em volúpias, movimentos animais e irracionais, falas e dizeres entrecortados, inexplicáveis, e ininteligíveis, sussurros e urros… o confessionário parecia tremer, até que se escuta um arfar discreto:”-Ai, meu Deus!!”, que apesar de em tom baixo, mostrava tons sensuais e de gozo, fazendo despertar olhares desconfiados e de estranhamento dos penitentes mais próximos. Muitos acreditaram tratar-se de uma confissão genuinamente pura. Alguns bêbados fora da igreja, juram que viram que nesse momento os gárgulas colocaram as mãos sobre as caras, como que envergonhados, e outros crentes, dentro da igreja, viram a pintura no teto, onde os anjos, dançaram em espirais. A moça, sai do confessionário, em meio a penumbra do anoitecer, olhando sorrateira para os lados, desaparecendo rápido em meio a escuridão. Após o desmaio, o padre aos poucos recobre os sentidos, e passa finalmente a acreditar na existência da carne.