“Então Glorinha, o que você realmente deseja em seus próximos anos?… Não! Não é sobre dinheiro, é sobre… você sabe! Os seus íntimos prazeres, as suas vaidades esotéricas; mulher empoderada; independente e livre para as suas mais estranhas loucuras. Vamos, faça aquela omelete especial de cogumelos ou aquele chá dos deuses… esqueça os seus temores. Então, se a vida é mesmo tão curta, pare de se preocupar com bobagens midiáticas e jargões politicamente corretos. Simplesmente viva e, em qualquer momento, ainda nos encontraremos na lama de nossas próprias existências!!!”
Continuava com essa minha tentativa de autocontrole sendo estimulada pela minha voz interior. Enquanto refletia sobre a vã existência, uma turba me pega de surpresa a me empurrar para o centro do cruzamento da avenida em meio de barricadas em chamas entre pilhas de detritos espalhados e amontoados de troços jogados… Muito difícil de ultrapassar sem tropeçar, porém, não dava mais pra pensar, só correr e correr… Segui sem direção, esbarrando nas pessoas que vão ficando pra trás, umas caídas, outras rastejantes. Se tem uma coisa que faço bem é correr; é isso aí, gosto muito e… de cogumelos! E assim, com todos correndo alucinados pra lá e pra cá, não dava mais ficar parada, tive que correr junto com a galera, senão… aquela multidão desesperada fugia em disparada sem nem saber do quê; era como uma espécie de terror coletivo! Vinham idosos, aleijados, crianças… vi até um neném de colo! Como assim? – ainda me questionei no ato. Ops, não é um bebê não! É… um anãozinho cabeçudo usando fraldão. Como corre desengonçado! Também pudera, com aquelas perninhas, bracinhos e o cabeção, só não estou entendendo o lance da fralda… vai saber! Achei melhor pular numa ribanceira e me esconder lá embaixo. Isso mesmo, um pulinho no mato, pronto! Que é isso, um monte de corpos mortos?! Vou me fingir de morta. Êta, que é isso? Esse barro nojento na minha cara, quase não consigo respirar e isso fede… vamos lá, Glória, vamos só pensar em coisas boas, tipo cogumelos e series da Netflix, como se isso fosse em “The Walking Dead“… De repente, um grito me distrai do devaneio: A BAFORADA DO DIABO!!!”… De onde vem isso? Como assim? Ei, tira essa mão suja da minha…! Era o cara que parecia estar morto do meu lado. Eu conheço esse cara! É ele mesmo o Doutor Rôla, o meu antigo ginecologista?! E tá vivinho, se fingindo de morto… Ele então se levantou, mal olhou pra mim e, aos berros de pega-pa-capá, saiu correndo desembestado, a esmo, sendo seguido pelos outros mortos-vivos… e… fugiram feitos baratas tontas. Estava todo mundo ali se fingindo de morto. Decidi mudar de rumo e corri para o lado oposto. Vi uma casa supostamente abandonada e vou me esgueirando até achar uma brechinha de nada que não dá nem pra passar um rato, mas vou cavucando feito uma toupeira até conseguir me espremer e deslizar ao feitio das cobras, adentrei aquele recinto empoeirado e lusco-fusco… Permaneci um tempinho quieta escondidinha lá num canto, só observando e buscando amenizar a respiração ofegante para encaixar respostas na cachola. Pronto, quase recuperada, resolvi dar mais um tempo ali tentando lavar a sujeira da minha cara com a água podre que escorre pelos cantos da parede… pera aí, ouço vozes e sons; ouço uma música vinda no porão e uma cantoria desafinada. O que eles estão fazendo lá, que coisa mais doida será isso? Um karaokê?! Bem… que bom, isso eu também curto. Vou tentar me enturmar, quem sabe rola um baseado, né? Até mesmo uma cervejinha cai bem, tô na seca mesmo. Chá de cogumelos! Ah, como seria bom dar uma pausa! Vi por uma fresta e, me espantei, era o anãozinho de fraldão tirando maior onda num street dance, dando piruetas e rodopios, fazendo caras e bocas todinho gut-gut. Fiquei apaixonada de cara a segui-lo nos passos da dança. Havia uma trupe de mascarados exóticos, aquilo era uma espécie de ensaio dantesco… Soaram as sirenes, ecoaram trovoadas alhures e tudo pareceu tremer e ruir sobre todos nós… A BAFORADA DO DIABO – uma gritaria uníssona, eis que o tempo pareceu parar e observei as cenas em preto e branco e em câmera lenta. Agarrei o meu anãozinho preferido e não o soltei mais; peguei-lhe no colo e lasquei um beijão daqueles de cinema e fizemos um amor ao feitio dos leões-marinhos. Foi ali mesmo em meio aos escombros e sacudidos pela tal baforada diabólica… Estamos juntos desde então, finalmente encontro a minha metade da laranja, envelhecermos com os nossos amontoados de neurônios e sobrevivendo de caos, merdas, prole, Netflix, ervas e muitos… muitos cogumelos até… até virarmos pó, lama…
“Então Glorinha…”
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