criança praia mar onda

De novo, mãe! *

Num domingo de calor, Miguel foi a praia com sua mãe. Antes de chegarem, ele já pedia ajuda pra pular ondinha. Mesmo com medo do mar, a mãe não negou. Mas avisou:
– Só um pouco.

Ele beijou em cruz os dedinhos e prometeu:
– Só um pouquinho.

Miguel pulou, pulou, pulou tantas ondas que a mãe cansou de brincar. Mas ele não:
– DE NOVOOOO!
– Só mais uma. Uôpa! Agora vamos.
– DE NOVOOO!
– Era uma vez, a gente combinou.
– DE NOVOOO!

E a mãe saiu do mar puxando Miguel, que gritava e chorava na frente dos banhistas. A mãe sentia raiva e pena do filho. Queria saber por que ele era assim. Nem Miguel sabia por que era assim. Sabia que, quando fazia algo legal, queria repetir, repetir, repetir… atéééé o infinito. Até a mesma historinha da hora de dormir: O menino maluquinho. Até mesmo lanche da sexta à noite: Escondidinho de carne. Até a mesma camisa de super herói pra ir na festa do coleguinha: Spider-Man. A mesma piada contada na mesa do almoço.

Ele nem mesmo notava tudo isso era sempre diferente, porque:

  • As leituras têm novos pontos de vista;
  • Os temperos mudam o sabor com as estações;
  • As roupas desbotam, Miguel, transformam-se em pano de chão;
  • E as piadas, de repente, perdem a graça.

O mesmo, sempre diferente, mas Miguel achando igual!

Quando eles brincavam de serra serra serrador, as costas da mamãe doíam, porque ele crescia! Mas Miguel dizia:
– De novo, mãe!

Quando ela não aguentava mais e parava, ele chorava e a noite não acabava bem. 

Sexta à noite, e Miguel atacava na repetição:
– Queria assistir aquele filme de novo!
– Mas você já sabe as cenas, decorou as músicas e até imita os personagens!
– Só mais essa? Prometo! 

A mãe deu “play” e Rei Leão brilhou mais uma vez. Por causa do guaraná que bebeu com pipoca, Miguel foi ao banheiro fazer xixi. A mãe cochilava de bater cabeça. Acordou e adiantou umas cenas pra acabar logo. Quando ele voltou…
– Você pulou a melhor parte, mãe!
– Tô com sono, filho.
– Volta o filme. Só um pouco. Quero ver de novo!

Cansada, cansada e cansada a mãe estava. E ainda era segunda!
– Mãe, vamos na sorveteria?
– Filho, fomos ontem.
– De novo!

A mãe juntou tudo que tinha e inaugurou uma nova repetição:
– Não. Não. Não.

Miguel já havia escutado essa palavra antes, mas tinha uma coisa estranha. Ela também ouviu. Nenhum dos dois quis escutar de novo aquela palavra de três letrinhas e um til. E foram viver suas vidas, cada um no seu quarto.

Sábado à noite. A mãe passa do banheiro pro quarto e de volta pro banheiro se enfeitando. Ficando mais bonita!
– Onde nós vamos? perguntou Miguel.
– Mamãe vai jantar com o namorado. E você, que já tem seis anos, vai ficar com a babá, a Milena.

Os olhos de Miguel encheram de água. Os da mãe também. Era a primeira vez que queria jantar sem o filho, que não queria voltar logo para casa. Era mais que um não. Era um:
– NNNNNNNNNNNNNNNNÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOÕOOOOOOOOOOOOOO.

Parecia um trem cargueiro que atropelava Miguel, que o desamparava, que fazia cada parte do seu corpo se soltar:
– Você não me ama mais?
– Claro que amo, filho.

Lágrimas. Muitas lágrimas. De Miguel e da mãe. Feito dois riachos que se encontram pra formar um rio sinuoso. Teve abraço e teve conversa sobre as coisas que mudam na vida e como as pessoas têm que mudar com elas:
– Por que mudar o que é bom repetir, mamãe?

A mãe sorriu e disse antes de sair pela porta:
– Porque se a gente fizer tudo sempre de novo, não terá nada de novo pra fazer.

Quando a mãe chegou, Miguel já estava dormindo. Ela deu-lhe um beijo na testa. Percebeu que ele parecia maior, com cara de menino grande.

No dia seguinte, tomaram café da manhã juntos. Miguel contou das brincadeiras novas que a babá Milena brincou com ele e da desconhecida alegria de ser feliz de um jeito diferente:
– Que jeito diferente, filho?
– Sem a mamãe perto – disse com a cabeça baixa.

Doeu na mãe, mas uma dor boa de alívio. Ele ergueu a cabeça, apreensivo, e perguntou:
– Posso ser feliz sem você, mãe?
– Se você estiver feliz, mamãe fica feliz. 

Miguel mastigou um pedaço de mamão com alegria. Com cara de travesso, disse:
– Posso te pedir uma coisa, mãe?
– O que, filho?
– Você sai com o namorado sábado que vem e deixa a babá Milena aqui comigo?
– De novo?
– De novo, mãe.
– Por que, Miguel?
– Porque você vai, mas você volta, né?
– Sempre.
– Você vai, você volta e eu te conto tudo novo que eu fiz!
– E como será a sua história?

Miguel colocou o dedo indicador no queixo, pensou um pouquinho e começou a narrar:
– Era uma vez uma noite diferente, sem mamãe, mas cheia de novidades.


* O conto teve a colaboração de Elis Barbosa, que auxiliou na pesquisa sobre o ponto de vista materno.