Saiu de casa cedinho, hora em que os amantes acordam para expulsar do coração juras de amor. Bebeu água limpa – agradeceu ao cosmos por estar vivo – bateu as asas, voou bem alto, esbarrou na atmosfera do planeta, mergulhou num rasante de alegria, pousou em si.
Aquela postura de anjo bonachão nem sempre lograva êxito. Afinal, ser bom dava prejuízo. Passara a infância ouvindo da mãe:
– Abra os olhos, seja bom, mas confie desconfiando…
Estudou na academia angelical, em Vênus, frequentou inúmeras oficinas de elucidação do psicológico dos terráqueos; especializou-se em tratar as barbaridades do ser: O egoísmo, a ganância, as trapaças, o ódio, o orgulho, a traição, etc. Aprendia os defeitos dos indivíduos para poder guardá-los. Nunca conserta-los. Enfim, a lei do livre arbítrio impedia de intervir no destino das pessoas.
Vivia entrando em furada, sendo trapaceado, enganado, porém acreditava na evolução da raça humana; havia sido bem formado, estava apto a cumprir as tarefas de anjo da guarda.
Investiu, tirando serviço extra de cupido, na relação de um casal cuja sinceridade vinha em último plano, uma paixão baseada em mentiras. Ela enganava-o descaradamente, ele esquecia de dizer a verdade. No fundo nasceram um pro outro. Alfaciano degringolava na resenha, entristecia diante da decadência do romantismo, perdia a partida de goleada, como anjo só tomava bolada. Alfaciano cumpria expediente em unidades de saúde durante o dia. À noite entrava no serão assistindo aos boêmios. Paparicava os bêbados, os quais, depois do primeiro gole, enfiavam a cara na latrina, pulavam de cabeça na gula, deslizavam no sabonete… O jovem anjo nem cochilava – invariavelmente – rompia o plantão sem descanso. Emendava um expediente no outro, socorrendo algum alcoólatra, já rendendo o anjo do turno anterior.
O trabalho extrapolou a paciência do anjo quando foi escalado pra confortar as vítimas da guerra. Caiu de paraquedas num conflito armado por diferenças religiosas. Os partidários da batalha matavam-se, copiosamente; no entanto os oficiais – dos dois exércitos – mantinham a retaguarda e nunca recrutavam os parentes para as fileiras do combate.
Levantou a origem do bate-boca. Descobriu que os soldados, armados até os dentes, brigavam por Deus do céu. A confusão rolava por causa do nome do criador. Do lado de cá chamavam do jeito aprendido no culto local; da fronteira pra lá nomeavam numa língua hostil a do vizinho. Estavam exterminando o futuro da juventude pela vaidade de registrar, na cultura vencedora da batalha, o nome do arquiteto do universo…
Alfaciano encheu o saco daquela briga inútil, largou o posto, pegou uma nave emprestada, encheu o tanque do disco voador, invadiu o buraco negro sideral. Marcou consulta com Deus, explicou a situação e saiu com a promessa da solução para o problema. Na sequência recebeu uma mensagem no celular, avisando das férias coletivas proclamadas por Deus. Os anjos estavam liberados, poderiam viajar, passear com a família. Aguardariam as novas ordens para retornar ao serviço.
Alfaciano, curioso, perguntou aos colegas o porquê do decreto divino. Tal foi a surpresa de saber o motivo: Deus, aborrecido com a bestialidade humana, havia jogado o Sol em rota de colisão com a Terra.
Acabou com a humanidade e enveredou na criação de uma vida menos ignorante numa galáxia distante da Via Láctea.
Muito bom, com momentos engraçados mas triste. Desisti de acreditar na evolução humana.