Um homem transitava há vários anos pelas ruas de sua cidade. Já nem sentia cansaço…
Chegava taciturno, quando chegava atrasado. Tinha sua hora imposta. Ia e voltava todos os dias, talvez, para situações diferentes; outro emprego, visita à casa de um amigo cujo filho havia cortado o pé num caco de vidro, num monte de lixo perto da sua casa, onde procurava brinquedos
Ia o homem
– Bom… segunda-feira… hoje…
Coçava a cabeça, fazia planos.
– Terça… pago o colégio. Quarta…
Ia o homem sempre pensando – nada há de faltar em minha casa enquanto eu estiver vivo – jogava na loteria, sempre que o dinheiro dava, ou seja, quando não pagava as contas da farmácia, do Armazém, do banco ou outros atrasos controlados
Ia o homem pensando tenso preocupação quase não era mais já meio acostumado condicionado
– Essa semana… vou comprar menos feijão… não… tenho que ir ao…
Essa minha cabeça! Tá aí, esqueci…
A mulher – os livros, homem.
– Ah! Certo, certo.
Sempre condicionado a acordar cedo. Até aos sábados, pois aos domingos tinha outras ocupações
– Meu filho saiu? Onde está ele? Não deixe esses garotos na esquina… passa um carro doido e pum… depois não se sabe quem…
Mulher – Falando sozinho?
– Não. É que eu preciso ir ao endereço que colhi desse jornal aqui.
Ia o homem – Pensando.
Quarta-feira, na esquina de uma rua do centro da cidade, bem detrás da casa onde havia uma galinha morta, via um casal de namorados se beijando.
– Canalha! Vagabundo! Aproveitando da filha dos outros.
– E mais – Também ela é uma sem vergonha… culpa dos pais…
Voltava o homem com uma bolsa de compras, pois havia recebido o pagamento. Agora, ele estava tranquilo; até sentia-se acomodado. Sentava-se num botequim. Apareciam alguns amigos; tomavam cachaça com coca-cola; outros, uma dose de whisky. Comiam até peixe, bife à milanesa. Ia para casa pensando: – Será que ela vai reclamar? Acho que não…
Mulher em casa – ainda não chegou. Será que ele estava naquele trem?
Lá para as tantas da noite, um vizinho bate na porta:
– Moço… ô, moço. Moço…
– Quié!? É sonolento…
– Tão brigando lá para o lado da Vala
Aí o homem fala com mais força – onde?
– Em frente à padaria.
Levanta. Corre toda a casa. Reforça o trinco da janela e diz:
– É muito tarde… deita, mas não dorme mais.
Pensando o homem: se for o marido dela? Esse sujeitinho não presta. Bolas, nem conheço… Mora aqui do lado há tantos. Nunca falou comigo, nem vejo ele há muito tempo.
Lembra – tenho que sair.
Sai o homem pensando. Seus dias passam como segundos no relógio – pensava – nunca se passou sexta. Sexta e eu…
Quem sabe ia fazer horas extras no emprego, encontrar uma mulher que não era sua, procurar uma mulher da vida em qualquer lugar…
Pretendia, mas não parava numa roda de homens para ouvir papos a respeito de mulheres ou futebol – tempo curto – ou papo dos que jogaram ovo e tomate podre sobre o artista que apresentava-se em praça pública – tempo curto.
E o homem ia pela vida pensando:
– Só a sexta-feira é quem sabe da minha vida.
As ruas estão cheias de homens pensando… ainda cabem mais homens…
Acostumado, condicionado, lembra, dizem que Deus dá o frio conforme o cobertor. Mas eu nem tenho cobertor.
– Eu sou o único que cai e nunca levanta. É o frio conforme o cobertor. E o pão conforme a barriga. A qualidade conforme o preço – invertido.
Lá vai o homem
Irado, segunda-feira novamente.
encontra-se com velho amigo que passava pela rua:
– Como vai?
– Tudo bem?
– Tudo bem!
– Família?
Ele – bem!
– Você sabia que hoje vai ter Blitz nas casas comerciais
– Não! É?
– É!
– Bom! Muitas?
– Ah… eu acho que não… uma… duas…
Um negro pixaim de pescoço suado respira e olha para ambos com ar de alívio.
Se despedem cada um para um lugar onde o outro não sabia.
– Bem que eu devia ter pedido dinheiro emprestado – medita
Para quê? Quem sabe para cobrir um cheque sem fundo.
Ia o homem, olhando vitrines e passando rápido. Via tudo.
– Muito bonito, mas muito caro.
Continuava com sua roupa simples. Às vezes deixava de pagar a prestação do sofá e comprava um sapatinho para não pisar na lama que entrava sapato adentro na rua de sua casa.
– Assim que melhorar vou comprar um carro.
Mulher – é mesmo, só assim a gente pode passear. Já ando cheia de ficar nesta casa fria o tempo todo. E paga o aluguel esse mês, senão o senhorio não conserta o telhado – também não entendia nada de inquilinato.
E ia o homem pensando
– Trabalhar, trabalhar… alimentar, alimentar…
Eis que surge o ônibus e ele aproveita durante o engarrafamento para ler a manchete do jornal – o homem que esfaqueou a mulher – enquanto outros passageiros quase todos com jornal na mão lendo – o servente que caiu do décimo andar – uma família soterrada pois a ventania demoliu a casa.
O homem saltava do ônibus.
– Aquele cara vinha dormindo o tempo todo… Pior! É a mulher que o filho menor desapareceu…
Tomava um café, mesmo achando caro. Comia um pão na manteiga que o português pegou com a mão molhada, mesmo achando caro.
No ambiente com ruídos de máquinas e guindastes, telefonemas e ordens, os sussurros:
– Vem aumento!
Outro – vem!?
– Vem o que? Ah! De quanto?
O homem pensativo tem as veias transparentes no rosto nos braços.
Nunca parava, nem para ver o carro que bateu
no poste que caiu
no garoto que morreu
no motorista que sumiu
o homem de paletó
trabalhar só sexta-feira
sem tirar a mão do bolso
sentado numa cadeira
rabiscar um pouco só
ganhava para vida inteira
Ia o homem pensativo: olhos parados numa só direção. E o coração em vários sentidos.
Mesmo achando muito caro, ele queria muito, sobre tudo.
– Vou melhorar minha casa… fazer a festa de aniversário da minha filha – e fazia, mesmo achando caro
– Vou construir minha casa própria – e começava, mesmo achando caro.
Deita o homem pensativo, contando para quinta-feira ou sexta realizaram os biquinhos
– Se o pagamento não sair, com quem vou apanhar dinheiro emprestado desta vez?
Será que o homem pensativo precisava de remédio para sua esposa? Sim.
– Ando cheio de amolação
Um trambique daqui, outro dali, ele ia conseguindo quase tudo.
Será que ninguém aparece e ele morre de cansaço, de idade, de serão, de luta, desilusão?
Uma vida disputada mais que chupeta de trem ou corrimão de ônibus entre os que não tem carro.
Comentam ainda – morreu de velho. Morreu e honestamente. Esse era homem verdadeiro…
Ninguém pergunta, sequer nota a ausência do homem pensativo nos campos de concentração da luta pela sobrevivência.
Vai ficar aí sentado ou de pé sem dar uma ideia… lendo… lendo…
Lendo um fato chato, uma realidade nua, vulgar e crua, que você sabe tanto?
É. Outros ainda preferem que o autor mate tragicamente o homem pensativo. Um homem que antes era pensador!
Sua morte foi realmente trágica; mas ninguém soube, a imprensa não revelou, pois o patrão não permitiu.
Mas o autor não matou o homem pensativo, sabia? O autor o mantém vivo e neste instante que faz ele, o homem?
Neste minuto, neste momento, o homem pensativo LÊ.
Davi de Castro é jornalista.
O conto O homem que foi publicado na coletânea Primavera relativa, em 1977 (acervo: Moduan Matus).
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