A Vila do Medo

Os cães estão em polvorosa. A rua dorme num silêncio surdo. Somente um alguém transita à noite. Os cães pulam e latem nervosamente. O perigo se anuncia. Somente uma pessoa invade o vagabundo beco, naturalmente à procura de algo. Ou tentando se esconder. A luz do quarto está acesa e uma fina fumaça vertical exala do cigarro insone.

– Que dia é hoje? Então é domingo. Dia de descanso não se rouba…  o que estaria fazendo a esta hora este homem que assusta os cachorros? Estaria necessitado de alguma coisa.  Por que não atende a vizinhança?  Já passaram vinte e cinco minutos de sofreguidão.  O Ladrão deve estar encurralado na noite fria. Não posso continuar inerte querendo que o homem seja devorado pelos cães famintos. E é isso que acontecerá com aquela pessoa:  se não vier o acolhimento rápido, ele será pisoteado e escarnado pelos cães.

O cigarro é só cinzas. A noite gemida e barulhenta não permite conciliar o sono com o alvoroço.  Pela sexta vez este mês a noite é de sobressalto. No íntimo do quarto mal iluminado e pobre, a vontade de entrar na briga cresce: sair para comprovar o ataque e salvar o ladrão.

Os cães em guerra ruidam na rua pobre. E cercam o homem. Mas ele não grita, sufocado pelo medo de ser descoberto e morto mais rápido. Será que está sem voz? Ou sua garganta foi petiscada? Mas estes animais não são carnívoros. E se cismarem de ser? Mas ninguém acode. E se veio buscar remédio para o filho enfermo? Ele precisa falar com alguém.  Ele precisa da intervenção de outros homens. Para que a luta seja de igual contra os cães.  Por que ninguém intervém? Será que estão surdos esse povo da Vila? Esse homem precisa de remédio. Ninguém ocorre sair e ver que essa luta é desigual. O homem pode ter vindo buscar socorro, um motorista para levar a esposa para maternidade. Dentro das casas só há medo. Pode ser um ladrão. As luzes acesas do outro lado do beco indicam que há alguém acordado sofrendo.

Cri, um grilo ajuda a preencher o quarto cheio de latidos e grunhidos dos cães. Outro cigarro aceso. Parece que os cães estão aumentando em número. O barulho atraiu as feras da vizinhança. E ninguém pode dormir com estridente algazarra, aprovando a covardia dos cães contra o homem só e acuado, na noite perdida dos sonhos inúteis, com muita vontade de brigar. Algumas cercas parecem ter ruído. O arame é pisado, arranha o chão, e engrossa a briga desigual. No outro quarteirão uma sirene de polícia atrapalha o dialeto violento dos cães.

– Não é possível esta luta desigual. Ninguém acode o homem encurralado. Não sei como pode dormir quando alguém acordado luta sozinho contra dezenas de cães. Pelo jeito o ladrão será devorado impetuosamente e ninguém abre uma janela sequer. Ninguém ajuda o homem. Essa rua é só gente que dorme pesado seu sonho intranquilo. Esta noite é massacrante. Não é possível essa luta desigual.

Tiros.  Não. São girândolas festejando o dia de São Jorge no terreiro do pai Guilherme.  Os cães se assustam e por um segundo interrompem o assalto. Imagina a carnificina.  Voltaram avançar. Os latidos apavoram. Tenho que sair. Não posso mais ficar aqui fumando.  Eles são muitos contra um homem apenas.

O beco deve estar que é poeira pura. Os latidos se encurtam. Que desgraça será que aconteceu? Que quer este homem que não grita nem diz a que veio?

Tiros. Um cão somente ladra a Vitória….

Trancado no meu quarto, ouço as balas explodirem. Por certo no corpo de alguém. Não me atrevo a abrir a porta e sorrir para o homem assaltado pela noite. Ainda cedo na esquina do bairro ouvi alguém contar que a situação não está mole: estão roubando e matando sem pensar muito…

Tenho que viver, ainda que sem segurança, para respirar embaixo de uma goiabeira.

A qualquer momento posso ser abordado por um indivíduo esquálido ou bonitão que pedirá a minha camisa. Se não der, pedirá minha calça. Se eu ficar calado, pedirá meus sapatos. E não fará um outro pedido, sem antes me atirar na casa seu pesado calibre quarenta e quatro e tomar tudo de mim, mesmo que eu não tenha nada para lhe dar. Trancado no meu quarto, ouço tiros durante a noite toda. De dia também. À tarde. A qualquer hora.  Trancado no meu quarto, eu não estou seguro. Nem num cofre.

 

Luís Ferrão é editor, publicitário e jornalista. Vive atualmente em Resenda.

A vila do medo foi publicado na coletânea Primavera relativa, de 1977 (acervo: Moduan Matus)