Tão triste na plataforma super lotada. O corpo suado, as roupas pesando, as ideias confusas na cabeça. Vejam só que rotina: o trem está atrasado mais uma vez, as pessoas se esbarram sobre o mesmo desgosto. Ele se sente o mais infeliz de todos, pois está sendo arrastado pelos acontecimentos. Importa quanto tempo de trem demore aonde ele vai chegar? Carlos, encostado no poste, não quer pensar. O sapato aperta. Vocês não podem imaginar como essas coisas comuns nos torturam. Sente esbarrões no meio do corpo e nas pernas, mas o que está à volta, o que está por dentro, não tem uma razão de ser para este homem cansado. Ele se sente batido, não só no corpo, há uma dor maior em torno de tudo. As pessoas sem expressão cruzam-se diante dos seus olhos. Ele não vê ninguém. Prefere assim. Já uma musiquinha escrota de Caetano Veloso no alto-falante tentando adocicar a espera do Povo. Escrota? Talvez seja simplesmente inútil. Eu não vou discutir isso agora.
18:10 h. O fim do dia machuca o peito de um homem assim, não tem surpresa. Bolsos vazios. A incerteza com relação aos passos a serem dados. Um medo trágico de se repetir no erro, a sensação de que sua história toda está sendo muito mal contada. Há pouco estiver na Cinelândia com sua bela e desencontrada Vera. O amor não resolve o problema dos homens. Conversando com Vera se esvaziava a cada vez mais, que contradição. Aproxima-se um trem, mas não é para esta linha. Amendoim torradinho, dois pacotes paga cinco. Na manchete da Última Hora um general sugere pena de morte para os tarados. E quem há de punir os Generais? Na cabeça dele duas imagens emboladas: Vera rebatendo o desgosto com essa vida sem sentido e um grupo de militantes armados tomando conta das dependências da Central do Brasil. Pelo que ele imaginava, seria assim, só se normalizariam os transportes coletivos com militantes de organizações revolucionárias controlando as rédeas. Muitos tiros, balbúrdia, mas a revolução triunfava lentamente em suas ideias. Carlos sabe que tem que descer até sentir que ainda estamos distantes dessas coisas, mas o sonho é uma parte do seu ser. Uma parte que rejeita aquele tédio geral das argumentações de Vera, de que vale tudo isso se você não está aqui. Pior é que o tédio também o embriagada. Nada será como antes, bichim, podes crer. E me sinto como numa tragédia parte porque acredito que haverá quem vencerá.
Ele está triste por se sentir incapaz de amarrar sua ação sem coluna vertebral. O trabalho do jeito que está aliena cada vez mais. Não é isto significado de tudo? E Vera é um amor sem recompensa. Ele gostaria de entender mais esses mistérios, mas o mundo é grande demais para um homem desse tipo, com certeza. O trem não vem, mas não ruge. Os militantes têm muito trabalho pela frente, sem dúvida. O cheiro é de suor forte, urina, mas Roberto Carlos continua chamando o povo à compaixão. Pouco mais de 50 cruzeiros no bolso, não dá para pensar em pegar o Evanil e fugir desse atraso. Pensa na morte para os tarados que comandam a Central do Brasil, os senhores Generais. eu não quero pensar em nada, sou um homem muito fraco. O desafio está justamente na necessidade de pensar e agir para vencer esse marasmo. Só assim seria um dos militantes que libertarão o povo, derrubarão a ditadura do Figueiredo e todos os Generais, construirão o Governo dos Trabalhadores. Mas Carlos agora só quer que o trem venha logo. Vera se afastara dele por causa daquela sua insistência em ir para o sindicato brigar contra a corja do pelego Pimentel. E ele se afastara dela nem sabe porque, na verdade não se sentia distante, já que, volta e meia, ia vê-la na lanchonete movimentada da Álvaro Alvim.
Não sei como se chega a um estado desse. Ele tem preocupação com a luta, já não há como desmentir. Porém, lá no fundo, há uma fadiga muito maior cercando seus passos. Se Vera o visse, no sindicato, cumprindo tarefas sem maiores questionamentos, achando que bom mesmo é que o tempo passe, bonito mesmo era Vera, mas ele não quer pensar, o amor não resolve os problemas dos homens, não vai ser essa mulher. O desejo vem com uma golfada e o vai e vem se dilui com uma sensação doida naquele ambiente tumultuado. O alto-falante anunciava uma séria avaria numa composição elétrica na altura de Cascadura e avisava que os ramais para Nova Iguaçu só iam restabelecer depois das 20 horas. A gritaria toma conta da plataforma. Há uma revolta geral e todo mundo sai à procura de um ônibus, caralho. Se houvesse organização, nessa hora explodiria aqui um quebra-quebra. Ele até pensou que fosse acontecer alguma coisa assim vendo gestos inconformado. Contudo, a multidão se esvai. Sua tristeza não pega por aí porque ele sabe que haverá uma desforra para aquilo tudo. Carlos começa também a caminhar, sabe que vai ficar sem dinheiro para o lanche no dia seguinte, mas caminha também em direção ao ponto do Evanil. Ele não quer pensar, não quer correr por sobre suas contradições. Só quer pegar sua vaga no ônibus, chegar em casa, olhar as crianças, sentir aquele calor sem qualificação, comer a comida que Conceição certamente terá preparado para ele. Veja se dá pra entender. Um dia os militantes virão ousados, sem maiores problemas na cabeça, sem tristeza. Virão libertar sua gente. Carlos sabe e caminha.
Enock Cavalcanti nasceu em 1953, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Filho de Manoel Paulo da Silva, vendedor autônomo e de Josefa Cavalcanti da Silva, a Dona Zuzu, ele tem cinco irmãos. Começou no jornalismo na década de 70, onde trabalhou nO Pontual, também no Correio da Semana e no Jornal de Hoje. Foi repórter de O Fluminense, Jornal do Comércio, Fatos e Fotos, Manchete e copy desk em O Globo. No período da ditadura militar, atuou na chamada imprensa alternativa, tendo sido fundador do jornal Berro da Baixada e da revista Equipe. Enock está em Cuiabá desde 1987.
O conto Veja se dá para entender foi publicado na coletânea Contos de plataforma, de 1981.
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