Ah! A nossa opulenta, flexível e constante racionalidade evolutiva dos sentidos! Havemos mais inteligências cibernéticas, robóticas e armamentos para nossa proteção contra os inimigos. A evolução é o que almejamos. E a paz global é nosso lema e, também, dilema. Sim, busquemos a paz, nem que seja pela guerra! Para a nossa consciência, paz e a guerra são tão comuns quanto a própria existência humana, caminham juntas.
E o que teriam em comum: uma bucólica visão do sobrevoo continental de pássaros migratórios com uma ameaçadora nuvem de gafanhotos fugidia das planícies amazônicas em chamas? Ou, as imagens de uma colônia de baleias alegres e saltitantes, nadando nas orlas das costas tropicais, com a concentração de milhares de desabrigados de enchentes; ou, filmagens de peregrinações de grupos de esperançosos romeiros para exaltação de santas padroeiras, com as tentativas desesperadas de fuga de milhares de palestinos…?! Nada! Absolutamente nada! Exceto pelas superposições dessas cenas, que, de forma sistemática e repetida, foram transmitidas num imenso painel para que aquela seleta e bizarra plateia as assistisse. Alguns efeitos especiais, entrecortadas de flashes de cenas de canibalismo gravadas dos experimentos anteriores, aproximavam as imagens das faces revelando agonia e êxtase, As feições dos espectadores se refletiam em faces apopléticas e inocentes; todas as caretas traziam os seus olhos esbugalhados e sorridentes, transparecendo-lhes uma satisfação geral, algo como uma saciedade coletiva. Eles simplesmente emitiam sons e ecos guturais, enquanto engoliam os últimos nacos de carnes e vísceras humanas; de suas bocas escorriam-lhes fios viscosos misto de sangue e massa esponjosa.
Seriam “cobaias-voluntárias”, já que nenhuma delas poderia responder por si mesma – e participavam de um modelo terapêutico de tratamento coletivo para indivíduos socialmente inaptos. Embora fosse aquela a quinta tentativa – nas anteriores os efeitos colaterais foram desastrosos e algumas cobaias sobreviventes sacrificadas. Mas, nesta última, houve avanços consideráveis, com as adaptações necessárias… Estas novas cobaias teriam sido submetidas às terapias convencionais, de alucinógenos à choques e lavagens cerebrais e outras inovadoras, como a implantação de chip. Teriam estas, em comum, além do fato de terem sido presas e condenadas por crimes hediondos, o viés de suas próprias psicopatias. Deletaram-lhes todos os sinais patológicos e, também, tiveram suas memórias apagadas. Isso mesmo, elas foram mentalmente “zeradas”, sendo-lhes então, introduzidos os chips de memórias induzidas. O programa fora considerado um sucesso, malgrado certas baixas imprevistas, porém necessárias.
…Mas, restara ainda latente uma questão: o que teria ocorrido com os indivíduos daquele grupo bizarro de canibais? Sim, aquelas vinte pessoas que comeram os brilhantes e promissores cientistas daquele fabuloso experimento?… Afinal, são tão humanas, embora canibais, quanto nós?!; e, também, igualmente distintas entre si, homens e mulheres; jovens e idosos!? Bem, há, por óbvio, certas anomalias que, talvez, possam nos distanciar. Foram sim, e há tempos, diagnosticadas ideologicamente neutras e patologicamente consideradas nulas, entretanto, no clamor de seus destinos duvidosos, estando todas imersas numa mesma restrição psicomotora, com suas mentes “esvaziadas de tudo”, prevaleceu-lhes a inerente intuição humana de se entenderem como iguais a ponto de não se morderem e não se comerem, mas, todas juntas ali, e esfomeadas, chegarem a mesma conclusão óbvia a qualquer ser vivo, o instinto predatório, com a lógica pragmática pela sobrevivência da espécie: caçar e se alimentar, mesmo que as vítimas tenham sido os seus protetores ou… quiçá lá pra eles, como pseudo-deuses. Vai saber!…
Ok, tá tudo certo! Foi isso mesmo! Simples assim! Como inexistiam quaisquer restrições morais, religiosas ou éticas, foram consideradas sãs e recuperadas. Enfim, agora, são cidadãs livres e estão soltas por aí, sabe-se lá como, médicos, advogados, professores, políticos, escritores…
Então, qual final moral; ou ético; ou politicamente correto, poderíamos conceber? Algo que, de certa forma, fosse menos chocante aos sensíveis ouvidos alheios? Talvez, com um finalzinho feliz?… Alguns clichês poderiam nos ser úteis! Claro que sim! Ou, na melhor escolha, teríamos um bem apoteótico… Bíblico mesmo, como no “Êxodo”?!
Ah! A imaginável sensação de superação e afirmação da grande e efêmera racionalidade humana sempre tão flexível…
…e que todas possíveis carnificinas advindas tenham, enfim, valido a pena!
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