A marca

Moisés não escondia de ninguém  sua paixão  por Fuscas. Se pudesse, seria um colecionador compulsivo. Mas, como não podia se permitir a esse luxo, resignava-se com o Fusca 1500 ano 75, que havia sido de seu pai, o único dono daquela belezura.

Naquele ano, quando foi comprado zerinho na loja, pequenas mudanças no visual permitiram o aumento expressivo das vendas, como o acionamento do lavador da para-brisa com o acionamento no pé, trilhos mais largos nos bancos dianteiros e encosto com trava de segurança. Conservado em excelente estado, não era uma relíquia de quase cinco décadas para Moisés, e sim, a materialização do sagrado.

Em todas as suas memórias de infância e adolescência, lá estava ele, o potente Fuscão azul. Carro na estrada, levando a família para o trajeto poeirento em Jaceruba para curtir a cachoeira, os caminhos esburacados em Xangri-lá, na casa da madrinha, as idas à igreja aos domingos ou a subida íngreme em Vila Tiradentes, na casa do tio Osmar. De lá, contemplavam uma vista maravilhosa. O carro nunca os deixava na mão.

Tempos depois, seu pai, Marcílio, acabou comprando outro carro, mas não se desfez do Fuscão azul. O amor que ele tinha pelo carro passou de pai para filho. O pai agora era um aposentado que vivia com a irmã de Moisés, Heloise, em uma casa no final da rua onde morava Moisés, na esquina do Amarelinho do Proença.

Heloise precisou se ausentar. Ia ser avó. E a missão de cuidar de Marcílio coube a Moisés. Instalado confortavelmente na casa do filho, o aposentado, que sofria de Alzheimer, andou pelo quintal e foi contando histórias de antigamente, de quando era jovem. Rememorou as aventuras da família, que não foram poucas. Em dado momento, o pai não o reconheceu, confundindo-o com outra pessoa. Sentiu um buraco se abrindo no peito, como se fosse explodir. A situação, nova para ele, já era rotineira para a irmã.

No terceiro dia, estavam os dois no galpão, onde ficava ao fundo o velho Fuscão. Moisés foi atender  o telefone que havia tocado e estava na cozinha. Podia ser Heloise com alguma novidade. Foi rápido. Quando voltou, assustou-se com o que viu. A lataria do Fusca estava arranhada na lateral. Mudo, ele não disse palavra. Estava estupefato com aquele ato profano. Foi seu pai que quebrou o silêncio.

– Oi, moço. Minha esposa não sabe, mas tenho ajudado os companheiros do Movimento Estudantil. Prometi que iria parar quando Fátima ficou grávida. Mas não tive coragem. Ontem meu filho nasceu. O menino mais lindo de todos. Fui eu que escolhi o nome. Será que vou ser um bom pai? Essa foi minha última pichação. Acabou o spray. O senhor não é milico, é? Moisés sorriu. Nos olhos, as lágrimas que teimavam corajosamente em não cair. Respondeu:

-Não sou. Tenho certeza que seu filho vai se orgulhar muito do pai que tem. – e continuou- vamos tomar um café? – levando-o gentilmente pelo braço. Olhou de relance para o velho Fuscão azul. Continuava não os deixando na mão mesmo sem sair do lugar. Mais sagrado do que nunca. Atrás deles, as palavras estavam ali riscadas, cravadas na lataria: MOISÉS e DEMOCRACIA. Mais que palavras, eram agora, tatuagens na alma do pai e do filho.