1973. O pau comendo solto, como se dizia na época. Restrição de direitos, corrupção em alta em todos os setores governamentais, recessão, desemprego… João conseguiu fazer um curso de fotografia no Senac da Marechal Floriano, no Centro. Mas fazer o curso não era garantia de nada, como não fora o curso de datilografia, o de estenografia, o de rádio e televisão… Alguns meses depois de terminar o curso de fotografia, conseguiu um emprego em um escritório de publicidade, como carregador de equipamentos. Ali conheceu Alice, que também era de Nilópolis. Alice ficava na recepção, tinha a voz doce e meiga e trabalhava para ajudar a mãe, dona Alzira, que ficara viúva em um acidente de bonde em que, além do marido, perdera um olho. Havia doze anos que dona Alzira aguardava a indenização do estado – pelo marido e pelo olho. Enquanto a indenização não vinha, restou à Alice ser a provedora da casa. Um artesão de Olinda fez um lindo olho de vidro para dona Alzira. Era bonito, mas vivia caindo. Por conta disso, dona Alzira tinha dois copos com água ao lado da cama: um para a dentadura, outro para o olho de vidro, onde descansavam durante o sono da idosa.
Não muito longe da agência de publicidade onde trabalhavam, Tom Zé terminou de gravar as músicas que comporiam seu novo LP, que se chamaria “Todos os Olhos” e algumas agências de publicidade foram procuradas para ideias da capa. Andrade, o publicitário da firma onde João e Alice trabalhavam, reuniu seus funcionários para o famoso brainstorm. João ficou servindo cafezinho enquanto aquelas mentes prodigiosas trabalhavam em busca de um tema para o disco “Todos os Olhos”. Andrade propôs que quem trouxesse a melhor imagem para o disco iria ganhar, além do cachê, um bônus bem gordo.
Foi complicado convencer Alice a deixar que fotografasse seu furico. Fizeram várias fotos, que na época precisavam ser reveladas para conhecer o resultado. Mas não ficaram boas. Faltava alguma coisa. Até hoje João e Alice discordam em quem teve a ideia de roubar o olho de vidro de Alzira. O fato é que, naquele fim de semana, Alice chegou cedo na casa de João com o olho de vidro da mãe dentro da bolsa. Ah… mas entre uma boa ideia – se é que foi boa – e sua efetiva realização, há um mundo de pregas discordando. O diacho do olho de vidro não ficava preso por nada desse mundo. João empurrava com o dedo, apontava a câmera e o olho era cuspido. Em instantes, iniciaram uma séria discussão relacionada ao fato de Alice não conseguir segurar um simples olho de vidro com o ânus. Magoada, Alice propôs trocarem de lugar, já que João achava que seria fácil. Trocaram. Mas primeiro Alice depilou a vasta cabeleira que João possuía em seu orifício corrugado. João ajoelhou-se, apoiou-se nos cotovelos e Alice empurrou com força o olho de vidro da mãe. Força demais. João gritou e o olho de vidro saiu voando, espatifando-se na parede.
Nova briga começou. Como Alice explicaria para a mãe que quebrara seu olho de vidro? João propôs que colocassem uma bola de gude no copo e ela não perceberia a diferença. Foi só falar “bola de gude” que a ideia acendeu-se como uma lâmpada de desenho animado sobre a cabeça de ambos. João saiu, foi até uma loja e voltou com diversas bolinhas de gude. Eram menores que o olho de vidro de Alzira e uma das fotografias ficou perfeita. Tão perfeita que até o brilho labial que usaram como lubrificante deu um toque a mais de sensualidade nas beirolas de João.
Usaram o dinheiro do cachê para comprar um novo olho de vidro para Alzira. Cinquenta anos depois, na sala da casa de João e Alzira, há pendurada na parede a capa do disco “Todos os Olhos” de Tom Zé, emoldurada em uma bela armação de madeira. Ninguém sabe que é o brioco de João.
Maravilha de Conto. Acredito que essa, se não foi uma história verídica, deveria ser. Parabéns.
Obrigado, meu amigo.