1979. Início da produção de carros à álcool no Brasil e logo surgiu o slogan bem-humorado tipicamente brasileiro: “Carro à álcool: você ainda vai empurrar um”.
Eu estudava no Colégio Pedro II, na unidade do Centro. As manifestações contra a Ditadura, pedindo a volta das eleições diretas para presidente, governador e prefeito estavam em seu auge, mobilizando diversas pessoas, principalmente no Centro do Rio de Janeiro. Os mobilizadores da esquerda nos procuravam para fazermos distribuição de panfletos no Centro. Nos entregavam uma pilha de panfletos conclamando para o ato na Cinelândia, com o endereço de alguns prédios. Entrávamos, pegávamos o elevador até o último andar, subíamos mais um lance de escadas e estávamos no terraço. Ali havia um balde cheio de água. Enfiávamos a pilha de panfletos no balde até ficar bem encharcada, colocávamos a pilha na mureta do terraço, descíamos e íamos para o próximo prédio.
Quando o calor do sol evaporava a água, os panfletos caíam do alto do prédio, como se alguém os estivesse jogando lá de cima. Em instantes, a Polícia do Exército aparecia, subia os prédios, prendiam porteiros – que de nada sabiam – e iam embora sem nunca descobrir quem estivera jogando os panfletos do alto dos prédios.
Eu possuía uma parceira constante nessas aventuras, uma mocinha de sardas no rosto chamada Cássia. Cássia e eu, além de parceiros nessas peraltices políticas, tocávamos violão. Em todas as rodas de estudantes do Pedro II, se houvesse violão, estávamos lá. Algumas músicas, como “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” e “Admirável Gado Novo” eram pedidos constantes dos colegas. Havia uma em especial, a nossa música: “Sentado à Beira do Caminho”, que cantávamos juntos, mas com uma defasagem de tempo que enternecia os ouvintes. Cássia era um pouco mais velha que eu, atrasada por causa das constantes mudanças de endereço do pai militar. Em 1981, Cássia mudou-se para Brasília e perdemos contato.
Naquele fim de ano, imediatamente após o fim do ano letivo, ela me levou a uma festa em um apartamento de amigos no Catete, onde tocamos violão juntos. Confesso que aprendi a beber com ela. Mas declinei o convite do cigarrinho de maconha. A maioria dos jovens ali era de universitários, todos mais velhos que eu. Creio que era o único menor de idade naquela festa. Uma mocinha deu em cima de mim e Cássia ficou furiosa. Em instantes, não estava mais em lugar algum do apartamento. Eu não sabia que aquele seria nosso último encontro. Quando as aulas recomeçaram no ano seguinte, ela já não estava mais na escola.
Os anos se passaram, a Ditadura caiu, terminei o ensino médio, entrei para a universidade e deixei o violão de lado. Casei, tive filhos e um dia ouvi Cássia Eller. Uma voz maravilhosa da qual me tornei fã.
Em 2004, antigos colegas de colégio criaram um grupo no extinto Orkut para reunir os amigos. De conversa em conversa, chegamos às escolhas musicais e claro, surgiu o nome de Cássia Eller, já falecida então.
– Cássia Eller estudou no Pedro II Centro, quem lembra?
– Que ano?
– 1979 e 1980.
A grande maioria nem fazia ideia. Eu era um desses. Até que alguém soltou:
– Quem sabe muito desse tempo é o Jacob. Eles eram unha e carne…
E eu:
– Eu?!
– Pô! Vocês viviam tocando violão juntos! Ela gravou todas as músicas que vocês cantavam.
– A Cássia… era a Cássia?!
A minha Cássia era muito diferente da Cássia Eller, a começar pelos cabelos: Cássia tinha uma cabeleira que lembrava Elba Ramalho. A voz também era diferente. Naqueles tempos, ainda não era rouca.
Cássia Eller nunca terminou o ensino médio. Também nunca gravou “Sentado à Beira do Caminho”.
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