Vôo continental

Todos os anos, muitas de nós  atravessam um continente inteiro na direção contrária da maioria dos seres estranhos. Enquanto eles vêm do sul para essas terras do norte, nós saímos daqui em direção às terras do sul e nunca mais voltamos.

Não vivemos uma vida tão longa quanto a desses seres desejosos por uma prosperidade rudimentar. Nossa graça e urgência é a temperatura amena. Nem tão quente. Muito menos fria. Fugimos das florestas de lá, das terras que esfriam muito, depois de crescermos o suficiente.

Nasci de um minúsculo corpo deixado por minha mãe em meio à floresta. Como muitas de minhas irmãs, irmãos e parentes. A gente ama florestas. Árvores frondosas. Troncos bem altos com galhos cabeludos de folhas. Superpopulamos as majestosas árvores dos parques frescos do norte. E comemos. Comemos incessantemente dia após dia. Crescemos muito por comermos nesse ritmo acelerado.

Duas semanas depois de ter nascido me senti estranha. Comecei a me esconder dentro de mim mesma e assim construía minha própria casa provisória. Não queria sair dela, me envolvi por algum tempo na solidão de minha auto transformação.

Pouco me movimentei e então compreendi o quanto precisava daquele momento comigo mesma. Eu me guardei dentro de mim para conseguir nascer de novo. E quando nasci de novo ganhei asas. Pela primeira vez saí daquela planta que me abrigou e me alimentou durante dias.

Deixei minha casa construída em tecido por mim eu me senti livre de um jeito que nunca havia me sentido antes. Minhas asas bateram em movimento tão sublime e singelo que pareciam seda leve ao vento da chegada do outono.

E dali voei. Voei. Junto de tantas outras centenas de milhares de nós. Multicolorindo o céu azul com nossas asas alaranjadas e detalhes negros. Havia tantas de nós que era impossível discernir onde era o caule marrom das árvores ou apenas uma panapaná repousada sobre elas. Em alguns momentos fomos nuvens, noutros neve laranja recobrindo partes imensas dos galhos das maiores árvores de um laranja marrom. Em outros ainda brincávamos de ser a flor laranja em meio ao verde imperioso na floresta.

Aos primeiros ventos gélidos, todas nós partimos. Saímos em direção ao sul. Nosso voo coletivo laranja amarronzado obscurecendo e cintilando o céu em pleno dia ensolarado chamava a atenção deles, vinham nos observar com olhares curiosos. Nossa revoada atraía-os tanto porque era um verdadeiro carnaval na floresta. Uma bagunça organizada. Nossa dança os hipnotizava. O que mais os impressionava, porém, era a vastidão percorrida por nós. Um continente. Dois a quatro mil quilômetros revoávamos em nossas breves vidas. Sim. Somos viajantes.

Danaus plexippus plexippus é como nos chamam os de casacas brancas. E os de chapéus engraçados segurando redes tentando nos capturar, esses nos chamam: Monarcas. Esse bicho homem que vem aqui no meio do nosso jardim e vizinhança com aparatos pretos em suas mãos, são barulhentos. Não deveriam estar aqui. Sentimos falta dos antigos vizinhos, nossas mães, avós e tias que sempre nos contam histórias de homens e mulheres de pele avermelhada ou amarronzada. Os de coração selvagem.