Quando entrei pra PM, a primeira coisa que imaginei foi como sobreviver nessa instituição acusada de tanta corrupção e envolvida em diversos escândalos de violência urbana. Hoje, me tornei a primeira mulher da minha turma a chegar no posto mais alto que posso antes de seguir a oficial de primeira linha. Minhas outras colegas se impressionam e me admiram com respeito por tais façanhas.
Trabalho duro, pouca conversa, resultados diários, trabalho em equipe, comunicação adequada com meus superiores e operações bem feitas, bem executadas. É claro: muitos sequer acreditam nisso. Pensam, sem dizerem pelo menos não diretamente para mim, que minhas promoções estão ligadas ao caminho mais fácil, aos subterfúgios da organização. Não dou ouvidos.
É bem verdade: tenho amigos em todos os lados, acima e abaixo da minha patente, embora isso também signifique problemas pessoais misturados aos problemas de trabalho. E nessa breve carreira eu me dei conta do mais importante: manter-se fiel e leal às pessoas com quem trabalho.
Hoje, no meio dessa pandemia, eu ainda tenho muitos amigos brigando entre si para encontrarem um culpado de tudo isso que estamos vivendo. Sento-me aqui diante desse horizonte exuberante dos morros do Rio de Janeiro e me recordo do dia em que, ainda com a farda ensanguentada, chegara de uma operação, depois de carregar um companheiro ferido em combate. O deixara na ambulância, poucas horas antes, e eu reflexiva, me perguntava quando é que isso deixaria de ser a regra. Nessa mesma cadeira da sacada da casa da minha irmã, pensava sobre as perdas em várias guerras e parece que a pandemia não é o único vírus que nos sujeita a tantas derrotas. Há uma epidemia de ódio e ignorância tão grave quanto essa pandemia, ambas alimentadas pelo descaso e omissão de muitos de nossos líderes sociais e políticos.
Enquanto eu chorava para dentro as lágrimas por perder mais um colega numa guerra insana, observava famílias brincando com as crianças, exatamente do mesmo lugar onde me encontro hoje, embora hoje meus olhos chorem ao perceber a dor de muitas famílias perdendo seus entes queridos para guerra contra o vírus biológico.
Essas guerras nas quais lutamos sem qualquer possibilidade de escolha de não lutá-las, nos retiram do lugar comum e nos preparam para uma reforma profunda e silenciosa, reforma de nossas almas.
Como cães que roem os ossos em busca de uma sobrevivência por mais alguns dias, ao passo das teimosias de um cotidiano em ruínas nas grandes capitais, por conta da violência urbana e da pobreza, minha mente fervilha na urgência de nos reformarmos internamente e como sociedade. Somos cães roendo ossos porque o pouco que ganhamos são apenas sobras de um sistema onde poucos privilegiados mordem toda a carne possível e a impossível guardam para si, acumulando-as. E a nós trabalhadores, servidores públicos ou não, nos jogam os ossos, as sobras para que nos mantenhamos ocupados nas guerras, exatamente onde querem que estejamos.
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