Daquela sacada, no seio dos acontecimentos, uma cadeira sacava o entorno calada, recolhida na sua insignificância de objeto estático. Arquivara na memória desde a raiz da árvore à condição de mobília. Registrava, passivamente, o acolhimento de várias gerações.
Comprada na entrada do século XX, servira de presente de aniversário à bisavó, testemunharia o patriarcalismo, a conquista do voto feminino, a inserção da mulher no mercado de trabalho; mas também denunciava 0 autoritarismo do bisavô!
Os bisavôs bateram as botas, a cadeira de balanço foi parar no centro da sala de vovô, com as palhas do assento danificadas, onde o buraco era mais embaixo, pois ali as mulheres romperam as amarras… Vovó ingressou no curso normal, tornou-se professora. O marido, a contra gosto, fruto do machismo enraizado, teve de aturar a imponderação da mulher que dividia as despesas, cobrando respeito.
A cadeira, surrada, sofreu restauro, ganhou almofadas de espuma, aposentou as tiras de palha; aturou às golfadas do bebê, os peidos de vovô. Sobreviveu às brigas do casal,
Os avôs morreram de desgosto, porque parte dos amigos foram assassinados nos porões da ditadura militar.
Papai, sozinho neste mundo injusto, tratou de contrair matrimônio com mamãe; uma feminista de vanguarda, militante de esquerda, inserida na luta de classes, ligada na redemocratização do país, defendia eleições diretas já!
O casal revolucionário concebeu-me num show de rock pauleira, atrás do palco, num tesão da porra! Vim ao mundo sorrindo, consequência de uma gozada feliz.
Mamãe, muito criativa, customizou a cadeira, coloriu a madeira, colocou plástico, modificou o visual, Refletiu sentada na relíquia, resolveu manter o balanço, pois as reflexões acerca da vida continuariam a partir daquela parada pra pensar.
Nasci, em casa, estava com pressa, não deu tempo de ir ao hospital, vim ao mundo nos braços da cadeira colorida.
Casei, ganhamos a cadeira de balanço, de presente de casamento, construímos um lar, tivemos um filho lindo, hiperativo. A inquietação do menino demoliu a herança.
Aproveitei a madeira, fiz um cavalo de pau, a criança aproveitou bastante, cavalgou durante toda a infância; cresceu, estudou, ingressou no movimento estudantil, cursou Filosofia.
Outro dia deste – o descendente revoltado com a minha morte por Covid – brigou feio, correu em casa, pegou o resto da cadeira que sobrou, transformou em porrete e foi pra rua defender a sociedade contra o nazismo.
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