Acordei muito aturdido com qualquer coisa que nem eu sabia. Levantei sentindo o corpo pinicando como se várias formigas me picassem a carcaça. Fui até a cozinha e preparei o chá de hortelã. Depois do banho, revirei a caixa de antigas quinquilharias: reencontrei um brinquedo, um passado distante. Era um carrinho de madeira em formato de melancia que tinha um barbante que, ao ser puxado, abria duas asas em formato de fatias da fruta. O carrinho-melancia tinha nariz, boca e dois enorme olhos que entravam e saíam de órbita conforme o carrinho andava e as asas-fatias de melancia abriam e fechavam. Um presente que eu havia ganho aos quatro anos de dona Cristina, vizinha de seus setenta e poucos anos. Numa noite acordei em sua cama. Ela estava deitada comigo, com seu rostinho colado ao meu.
– Aonde estou? – Perguntei assustado.
– No meu quarto e na minha cama! – Respondeu dona Cristina em seu sorriso meigo.
– Cadê minha mãe? – Perguntei esboçando choro.
– Foi passear com seu pai e te deixou aqui pra eu tomar conta!
Ensaiei uma carinha de choro no qual ela acariciou meu rosto e disse:
– Eu não mordo.
Tranquilizei-me. Olhando em meus olhos balbuciou com os seus olhos úmidos
– Você lembra tanto um antigo amiguinho meu!
Dona Cristina morreria poucos meses depois.
A rua onde morávamos era perto de onde moro atualmente. Era uma pequena vila. Decidi visitar a rua, a vila, a antiga casa de dona Cristina. Chegando lá parecia que tudo tinha diminuído: a rua, a vila, a casa. Me senti um verdadeiro Guliver. A casa de dona Cristina estava curiosamente toda aberta como se me esperasse. Na sala uma enorme cadeira de balanço balançava lentissimamente como me convidando a repousar nela. Em passos vagarosos me aproximei e sentei. Um doce cheiro de hortelã me inebriava os sentidos, acompanhado ao som de um piano. Adormeci. Despertei com uma linda e desconhecida menina me puxando pelo braço.
– Vem, garoto! – Gritava a menina irritada.
– Para onde? – Perguntava eu com voz de criança.
– Para aquele lugar que eu te falei!
Fomos de mãos dadas. Agora eu era um menino, vestindo um uniforme de marinheiro. Estávamos em uma varanda de terra batida; um carpinteiro fazia várias melancias voadoras como a que eu tinha encontrado na caixa.
– Menina, não me vai brincar longe, hein!
– Pode deixar, pai!
Fomos até uma mangueira, onde entre as abóbadas havia uma imponente casa na árvore, com certeza feita pelo carpinteiro. Subimos até lá. Brincamos o tempo todo. Éramos felizes. Até que pegamos uma das melancias de madeira e brincamos de jogá-la um para o outro como se fosse bola. A menina jogou a melancia com muita força para mim; ela bateu na minha mão e caiu no outro lado do muro.
– Eu vou pegar! – Gritei num impulso.
– Espera aí! – Gritou a menina, me acompanhando.
Saímos como dois raios pelo portão aberto. A melancia estava aos cacos na rua, sobre os trilhos do bonde. Estava tão concentrado em catar os pedaços da melancia que nem enxerguei o bonde que vinha em minha direção. Agachado, com o foco apenas no que restava da melancia, ouvi o grito desesperado da menina:
– Tonico, não!
Só tive tempo de me assustar com o bonde que já estava em cima de mim.
– O que o senhor deseja?
De repente me encontrava novamente na sala de dona Cristina, sentado na cadeira de balanço. Avistei um antigo retrato em preto e branco sobre um móvel: era a mesma menina do sonho no colo do carpinteiro, seu pai. Expliquei que era um antigo vizinho que vinha rever os velhos amigos, matar saudades. Que havia conhecido dona Cristina, a antiga dona da casa, antes de seu falecimento e que era eu muito criança na época. Perguntei quem era a menina da foto.
– É dona Cristina quando tinha 7 anos. Essa foto já deve ter mais de 100 anos. – Respondeu a moça irritada, com certeza achando que eu era um ladrão.
Pedi perdão por qualquer coisa e despedi-me. No nariz, persistia o perfume de hortelã; nos ouvidos ainda o som do piano; diante dos olhos, a melancia voadora; na memória, ainda a presença de dona Cristina.
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