Essa é a história de uma menina que odiava o próprio nome. Detestava sua cor, o nariz, seu cabelo, suas raízes, os lábios grossos sempre em silêncio. Tudo o que via refletido nas águas era turvo como seu passado e o futuro sombrio. Menosprezava a vida, mas temia a morte absurdamente. Não sabia os motivos de tanta angústia e mutilações. Tinha a alma trincada como um espelho clivado. Os dias passavam sem que Cândida aprendesse a cuidar de si, e, numa manhã, no segundo domingo de maio, acordou decidida a eliminar seus tormentos. Era protagonista em autodestruição. Afinal, achava a própria vida um blefe. Começou com lâminas na carne, com álcool em excesso, com remédios… A cada tentativa, em vão, o pai dizia: “da próxima vez seja competente, e se jogue na linha do trem.”
Cândida, que sofria de amnésia, não lembrava que nascera no meio às águas uterinas que nos refletem, não recordava do reflexo nos olhos maternos enquanto mamava. Não tinha lembrança de quase nada, a não ser o apelido que o pai deu a sua mãe, espelho sem aço. É órfã de mãe desde bebê. Todos se recusavam a falar sobre a causa da morte violenta de Dona Conceição. A tentativa de livrar-se do tormento era a sétima e a primeira em que escreveu uma carta de despedida para as irmãs mais velhas. “Fofa e Sisi, eu sei que sou um espelho sem aço como a mamãe, mas não serei um problema sem solução pra ninguém.”
Quando a mensagem foi achada, já era tarde demais, a menina saiu de casa ainda de madrugada. Caminhou, zonza de sono, do centro de São João de Meriti em direção à estação de Coelho da Rocha. Ela esperou o trem se aproximar. O barulho dos vagões nos trilhos soou como um canto de vissungo, um alerta, um lamento, um chamado. Seria o estrondo de seu corpo sobre a estrada férrea? Sim, Cândida desencarnou. Por frações de instantes, viu o próprio corpo estendido, inerte sobre o caminho do ferreiro. Em vida, nunca acreditou em Deus, mas a sua passagem trouxe-lhe surpresas. Os problemas insolúveis tiveram outro sentido em suas memórias póstumas. Seria a morte um grande espelho de enigmas? Essa ideia a fez desesperar-se. Ainda em trânsito, tinha um dilema: ser ou não ser. A menina, já fora do corpo, recebe um presente das mãos de sua mãe e se questiona: Estou sonhando? Mamãe veio me receber no mundo dos mortos? O vento materno sussurrou: Mire o espelho de Apará. É preciso interrogar o passado e lançar sua adaga para cuidar de si e garantir seu futuro. Diante da resposta, ela começava a duvidar da trama e a fazer mais perguntas.
A mãe conduziu Cândida até a Casa Sagrada, cuja origem é a Pedra do Sal. No terreiro, havia uma árvore frondosa chamada Iroko e um Bambuzal belíssimo. No meio, uma epifania foi tecida pela mãe ancestral para a filha desprotegida. Era um presente capaz de revelar os mistérios insondáveis de Cândida, os mistérios insondáveis do Brasil e os mistérios insondáveis das diásporas do mundo. A essa altura, a curiosidade suspendeu a tristeza, a fantasia substituiu a angústia e a intuição destruiu o desânimo. Tomou coragem, abriu a capulana e viu-se diante de uma adaga e de um espelho de águas profundas. Uma avalanche de sentimentos e de recordações avolumou-se: compreendeu que a memória de família era um arremedo. Por várias vezes esteve com as irmãs e a mãe na mira da pistola do pai. O álcool era a desculpa para os delitos com as filhas. E eis o fim derradeiro: a mãe foi abatida para garantir o silêncio sobre a violação. Mas o segredo familiar foi revelado: o assassino da mãe era o pai, que a matou por amor ao abuso. O traidor da infância era o pai.
Olhando mais a fundo o espelho, percebeu que a história de violência não era somente sua, afinal havia uma tradição de violência neste arremedo de histórias que obrigava o povo a não ter memória de si, obrigando-o a ser espelho sem aço e a não atrapalhar os planos sórdidos do Estado abusivo que violenta a nação por meio de decretos. O Carnaval, o futebol, o samba são distorcidos para encobrir os dilemas da nação: a morte dos primos, do tio e do irmão mais novo, de gerações inteiras, retintas, abatidas nos autos de resistência, sem cordialidade. Segredo revelado, não há cordialidade.
Olhando ainda mais a fundo, eu mesma tomo a palavra neste enredo pra dizer que percebi no fundo deste espelho da alma, a minha pequenez diante de tanta violência nos quatro cantos do mundo. Nos olhos maternos eu vi alegria e sobrevivência, nas palavras maternas eu ouvia orações. Nos olhos paternos vejo cobiça, nas palavras ouço promessas de proteção, embuste e armadilha. Isso me confundiu. Amor e falácia. Mas a minha tragédia pessoal era um grão no oceano Atlântico no qual muitos foram deslocados à força de Zambeze, Nigéria, Togo rumo ao Haiti, ao Brasil, Brooklin. Será tudo isso aporias do espelho de Apará?
Sinto uma forte pressão sobre meu peito. Acho que estão me ressuscitando. Conseguiram me trazer de volta. Será que o Sagrado incorporou-me? De frente do espelho ôntico, reflito sobre quem sou diante de meu passado. Em face desta Relíquia, posso especular sobre o que serei e o que posso fazer com a minha adaga. Eu descobri que não desencarnei, mas foi minha mãe que encarnou em minhas entranhas. Eu a incorporei. Estive em transe, conversando com minha mãe Apará, que me mostrou pelo espelho, o Abebé, os obstáculos e poesias, violências e superação, e o que é melhor, ela me deixou de herança o dom das contações. O espelho de Apará é minha homenagem àquela que não desistiu de mim…
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