Rotina de médica

Trabalhava havia seis anos no Hospital São Vicente. Era uma rotina pesada, não só por causa dos plantões, mas por lidar com pacientes psiquiátricos. A gente se acostuma, mas a loucura não segue uma lógica e não podemos antecipar o que vai acontecer. Se o ambiente de um hospital já é caótico, imagine um hospital psiquiátrico. Até mesmo as fases da lua agitam ou acalmam os pacientes no plantão. Nada cientificamente comprovado, mas quem trabalha com pacientes psiquiátricos não duvida da influência da lua no comportamento dos pacientes.

Como se todo o caos não fosse suficiente na nossa rotina, o São Vicente entrou em reforma. Foi fechada uma ala e os pacientes remanejados para outro andar, alterando toda a nossa rotina. Tenho que lembrar que em um hospital psiquiátrico a segurança é fator muito importante. Não só para proteger os pacientes e funcionários, mas para proteger os pacientes dos funcionários, os funcionários dos pacientes, fugas e outros tipos de incidentes. São seguranças, muitas vezes policiais, que nos ajudam nessa rotina. Tem plantão calmo, tem plantão que é bem tenso.

Cheguei para o plantão no fim da tarde e assim que eu entrei, começou:
– Doutora, doutora, vieram me buscar!
– Quem veio te buscar, Sérgio?
– A máfia! Me descobriram aqui e querem me apagar. Ou me levar de volta pra Itália. Deixa não, doutora.
– Calma, Sérgio. Aquele é um policial. Ele está aqui pra proteger a gente. Tá tudo bem. Se acalma que fica tudo bem.

Mal acabei de entrar e lá vem o segundo problema da noite. Um paciente mordeu o dedo da colega. Era sangue pra todo lado. Acalma o paciente, socorre a médica que foi mordida, sutura… Chama a limpeza! E o plantão ainda estava no começo.

Fomos fazer a ronda, conferir cada paciente, revisar os remédios… e faltavam dois pacientes. Procura daqui, dali, um deles sugere procurar na ala fechada, em obras. Lá vem a segurança com os dois pacientes, bem sem graça. Demos uma bronca, conversamos com a segurança… e vida que segue. Uma das pacientes me chama atenção. Teresa. Olha pela janela, dá quase que um passo em direção a ela e volta pro mesmo lugar, de forma compulsiva.
– Que houve, Teresa?
– Tô cansada, doutora. Quero sair.
– Você só vai sair quando estiver boa. Está tomando os remédios direitinho?
– Tô sim, doutora. Mas tô cansada. Quando vão vir me buscar?
– Fica tranquila. Continua se comportando que quando chegar a hora eles vão te buscar.

Mais cinco ou seis ocorrências ainda aconteceram na madrugada, como um paciente ameaçando o outro com faquinha de plástico. Exausta, troco meu uniforme por uma roupa de sair e me dirijo à porta de saída. Quando estou saindo pela porta da ala psiquiátrica, um segurança põe a mão na minha frente.
– Senhora, não pode sair.
– Como assim, Araújo. Terminou o meu plantão.
– Tá bom, senhora, aguarda um minuto.

Ele aperta o rádio, fala alguma coisa por código. Dois enfermeiros vêm na minha direção.
– Que bom que vocês vieram. O Araújo não me deixa sair. Tô exausta!
– Senhora, vem com a gente.
– Acabou o meu plantão. Deixa eu ir pra casa!
– Vem aqui com a gente, rapidinho.

Eles me seguram pelos dois braços e me levam pra dentro do hospital. Disseram que não posso sair ainda. Falam pra eu me comportar, que por ora não vão me devolver meu jaleco. Perguntam se eu tomei meu remédio direitinho. Cansada, deitei na cama e chorei até dormir.

Coitada da Marta. Entrou aqui tem seis anos. Nova, parecia que ia se recuperar. Engravidou tem um ano e meio, provavelmente de outro paciente. Perdeu o bebê e piorou depois daí. A família não vem mais visitar e ela sempre arruma uma história pra tentar sair. Até ajuda a cuidar dos outros pacientes, mas acho bom não darmos mais o jaleco pra ela.