Todo fim de ano é a mesma coisa. No final de setembro já estão falando de Natal, as lojas já estão naquele apelo ao consumismo que se mistura ao que deveria ser o espírito do Natal: estar mais perto de quem se ama. Não tinha muito como me livrar das famigeradas brincadeiras de amigo-oculto. É sempre assim: você entra meio sem querer entrar, tira uma pessoa que você não sabe o que dar e depois fica insegura do que comprar. Quando não fica chateada com o que ganhou depois. Mas nesse ano especialmente a palavra me bateu diferente: amigo-oculto. Em outros estados é amigo-secreto ou amigo-invisível (nossa, horrível essa). Mas aqui no Rio é amigo-oculto mesmo. Me bateu estranha a ideia de que você poderia ter um amigo que você não sabe quem é. Alguém que é seu amigo, mas você não conhece. Seria possível ter um amigo que você não sabe quem é mais mesmo assim pode contar com ele? Enfim, devaneios de adulto nessa época de festas.
Como trabalho bastante e todo fim de ano é aquela correria, resolvi antecipar meus presentes de amigo-oculto. O dos amigos da faculdade, o do trabalho e o da família… ai, que saco! Não sei escolher presente pros outros. Segui aquelas listas que as pessoas fazem pra “ajudar”, mas que na prática não ajuda muito. Comprei tudo e deixei guardado, esperando o dia de cada troca de presentes. No amigo-oculto da família tinha tirado o meu pai, no do trabalho o chefe e na da faculdade minha melhor amiga: Eliane. Nem foi tão difícil assim escolher, mas tirar o chefe é sempre chato. Tem um peso a mais, as pessoas ficam zoando, não importa o presente que você vai dar.
Com as datas dos eventos foram chegando, separei os presentes, anotei de quem era cada um e fui me organizando pra não esquecer nenhum ou trocar os presentes na pressa. O primeiro amigo-oculto foi o do pessoal da faculdade. Nos encontramos num bar, rimos muito e fomos pra troca de presentes. Minha amiga ficou super feliz com o presente, mas eu não curti muito. Quem me tirou foi um cara que eu pouco tinha contato e me deu uma blusa preta, nada a ver. Eu que sempre usei roupas bem coloridas. Usar preto pra mim era quase que sinal de luto. Agradeci, mas não gostei não.
Na semana seguinte era o amigo-oculto do trabalho. A gente nem se diverte tanto, também não bebe tanto, mas é bem legal pensar que vai tirar aquele recesso e aproveitar um pouco pra descansar no fim de ano. Come um pouquinho, bebe um pouquinho e vamos pro amigo-oculto. Quando falo que tirei o chefe, ouço aquelas piadinhas. Se ele não gostou do presente até que disfarçou bem. Me deu um abraço, agradeceu e disse que ia usar logo. Assim que terminou a troca de presentes peguei meu celular. Mais de 20 chamadas. Gelei na hora. A primeira que identifiquei era da minha mãe. Retornei na mesma hora.
– Filha, vem pra casa. Seu pai acabou de falecer.
Perdi o chão. Na hora a festa acabou, vieram todos falar comigo, mas eu fiquei meio anestesiada. Meu chefe disse que me levava em casa e eu fui quase que carregada pro carro dele. Entro em casa, aquele tumulto, falo com a minha família e dali até a hora do velório é tudo um filme confuso na minha cabeça. É só uma repetição da cena de “meus pêsames”; “meus sentimentos”; “ele foi pra um lugar melhor”. Respondia tudo meio que no automático e torcia pra dormir logo, acordar e alguém dizer que era só um pesadelo. Mas nem dormir eu conseguia.
Ver uma pessoa querida no caixão é meio que um rito de passagem. É ter certeza que acabou e não tem volta. A ficha cai mesmo que parte de você ainda continue descrente. Ver ali no velório seus amigos, seus parentes e um monte de gente que você mal conhece é um pouco desesperador. Você não sabe bem com quem você falou e nem o que. Só lembro de estar olhando fixamente pro caixão do meu pai quando um homem colocou a mão no meu ombro e falou: “Fique tranquila. Estarei sempre ao seu lado”. Agradeci. Não tive nem ânimo pra saber quem era. Mas o mesmo homem continuou: “No que você precisar, não hesite em me procurar”. Agradeci de novo. Instantes depois me virei pra ver quem era e não identifiquei nem o vulto de quem falava comigo. Perguntei a várias pessoas próximas, tentei buscar quem tinha uma voz parecida, mas ninguém soube dizer quem falou comigo ou quem estava ali naquela hora. Fiquei com a sensação que tinha meio que conhecido o meu “amigo-oculto”. Apesar de não reconhecer sua voz, suas palavras me acalmaram. Só não sabia onde procurar quando precisasse.
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