“Não vejo outra saída, senão terminar de vez com esta minha estranha compulsão… não dá mais viver à sombra de um ídolo! Portanto, devo não só eliminar o efeito como, também e principalmente, a causa. Embora tenha sido, pra mim, bem proveitosa financeiramente, chega um momento em que ressinto não conseguir separar o ego do alter ego. É quando fica parecendo que a criatura suplanta o criador dominando-lhe completamente a personalidade. Esta será a minha última apresentação! E deverá ser memorável. Vejam como a plateia está eufórica. Todos veneram a minha versão drag da Marilyn… Ouçam: MERILI! MERILI!!! É a minha deixa…” ‘♪Repibardei-tuiuuu♪’
O facho de luz sobre o palco incidia e iluminava a reprodução clichê da famosa gravação da Marilyn Monroe cantando parabéns ao presidente americano, fixando o foco sobre a imensa face estática… Quando adentra, no centro, entre o cantinho esquerdo do lábio e a pinta icônica, a performática “Merili”, já com os seus trejeitos exagerados e plasticamente coordenados. “Era ela ali representada, cuspida e escarrada!” E a plateia eclética vai ao delírio… O artista transformista dá início ao que, assim pressupõe, seja a sua última apresentação stand up, ao menos sobre aquele formato. Já vinha a tempos ensaiando novas personagens”
– Não sei se em Freud isso se explica: essa coisa de substituirmos nossos próprios desejos pelos alheios… O fato é que não ficamos satisfeitos com a cor do nosso próprio jardim enquanto o do vizinho parecer estar sempre mais verdejante. Também não sei do porque me ocorrer estas conjecturas sempre quando sento nesta cadeira de balanço. Basta dar uma descansadinha, fazendo o embalo num vaivém e logo me vem aquele renhe-renhe monótono ranger das tramas das palhinhas pra bater uma sonolência boa… Aí é quando a cabeça começa espairecer e a consciência vaga a esmo em puro êxtase e prazeres sensoriais; parece até com a nóia do vício, mas deve ser mesmo bruxaria… Mas, querem mesmo saber, ferre-se o mundo que eu não me chamo Raimundo! Se há mais merda entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã subjetividade, prefiro não questionar mais nada. Vou passar a viver só de retóricas e só dar importância ao que realmente importa… A cadeira de balanço, por exemplo! Vocês podem até estar se perguntando o que esta quinquilharia continua fazendo bem no meio da sala? A velha cadeira da minha velha querida bisa disposta em frente ao arcaico altar erigido para Marilyn? Eram só elas… e eu, crescendo por ali. Enfim, quando fui abandonado pelos meus pais – deixaram-me ali à porta da frente, à beira da varanda, ao revés da sorte… uma criança de ano e meio nos braços de uma anciã caquética, qual futuro poderia ter? E ela me criou desde então, a minha bisavó, dos seus setenta e pouco até o fim da sua vida. Eu já tinha mais de vinte quando a encontrei, morta. Estava ali, sentada naquela mesma cadeira, com a boca escancarada e os olhos abertos diante do velho painel sobre o filme “Os homens preferem as loiras”. Agora, preciso me desfazer delas, da cadeira, dos ícones de idolatria e do ciclo vicioso em buscar aquelas inquietantes e excitantes lembranças recorrentes, quando ela me punha sentado em seu colo e logo vinham as suas apalpadelas voluptuosas, seus afagos, sua boca banguela… e as intensas lambidas e carícias babadas, quando, por alguns minutos, eu me sentia nos braços da própria musa. Tenho certeza de que a minha bisavó era bruxa – ela cansava de me falar que era. “E que eu também haveria de ser!” E me dizia, também, que a Marilyn Monroe foi a maior de todas as bruxas… “Foi e sempre será! Porque bruxa que se preze não morre, apenas se transmuta em outra coisa! E a Marilyn estaria entre nós, provavelmente como um golfinho! E, que toda bruxa de extirpe, nunca nega, sempre diz sim!”. Sei lá, mas já constatei de que a Marilyn jamais dizia não! Também, ao que me recordo, de jamais ter ouvido um não saído da boca da bisa… É… Ás vezes ela até desconversava, mudava de assunto… Então, sobre a Monroe eu não posso afirmar, mas, com a velha, não tenho dúvida alguma, ela era uma bruxa! E se transmutara naquela cadeira. Essa certeza está me enlouquecendo, preciso destruí-las, tanto a cadeira quanto a ideia sobre a bruxa; devo queimá-las que nem faziam na santa inquisição, pois só assim posso viver em paz, sem essa estranha compulsão pelo fantasma da bisa. É que não aguento mais continuar vivendo como ela, vestindo aquela camisola antiga e esfarrapada… Freud que me perdoe, mas, e agora mais do que nunca, preciso me desfazer do que ainda me oprime. Porém, antes da grande libertação, da apoteótica fogueira dos sentidos, devo pintar um quadro impressionista e expurgá-las de vez. Sim! Começarei pela cadeira de balanço, em tons pastel… Numa representação bem rústica, com suas pás à meia-boca e… os braços finos e caniços que nem os da dona… Só depois é que farei um esboço andrajo da velha, numa espécie de vovó esqueleto (?!)… Ela que venerava a Marilyn Monroe… Ela a imitava enquanto me beijava todo. Sim! Farei a velha olhando para o quadro na parede, algo como uma releitura balofa da Marilyn, ao estilo Basquiat/Botero, e um make up pós-moderno daquela camisola rota se transmutando na seda daquele famoso vestido esvoaçante… E, quem sabe, encontre em Freud alguma explicação plausível para este meu estranho prazer!
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