O incendiário

lava vulcão

Vamos supor que a Via Light esteja vazia. Que bom, posso furar os sinais vermelhos e chegar ao Bairro da Luz mais rápido. Estacionar meu Siena Branco, subir até o décimo quinto andar e entrar em meu apartamento. Lá dentro, vou encontrar o menino. O menino está deitado em meu sofá olhando pro teto. Eu dou um tapa nos seus pés e digo pra começarmos logo. Calma? Não há como ter calma, menino, já são oito da noite, amanhã acordo cedo pra ir àquele inferno de trabalho, comecemos logo. O menino não parece ter pressa. Levanta-se, caminha até a cozinha. Eu espero, afrouxando os botões da camisa. Ele volta com minha garrafa de uísque e um copo com gelo. Em seguida vai ao rádio e sintoniza a MEC FM. É hora do programa jazz livre e os bebops que eu adoro. O menino diz: bebe. O menino diz: dança. Eu bebo e danço e começo a suar. Então o menino abre a janela e me chama pra olhar a rua. Eu reclamo da hora que passa, amanhã o dia começa às seis, tomar café com pressa, e aquela tragédia toda. Mas ele insiste que eu vá à janela. Assinto. Boto a cara no vento fresco. O menino me entrega um cigarro, que ele mesmo enrolou. Aproxima o isqueiro da minha boca. Por um instante passa pela minha cabeça a irresponsabilidade que é deixar o fogo com alguém de tão pouca idade – os meninos são danados pra incendiar a casa. Depois ele aponta a serra, pros lados do Mendanha. Ela está queimando. Talvez em Cabuçu. Deve ser algum pecuarista periférico criando pasto pras suas vacas magras. Sei que é horrível o que o pecuarista faz, mas daqui é lindo. O incêndio na mata parece um gigantesco círculo de fogo, cenário de um conto de Borges. Engraçado, nós aqui com fogo nos lábios, observando a serra, já parou pra pensar se tiver alguém na serra, perto do fogo, nos observando? Um casal? Uma jaguatirica sobre a árvore? Um traficante de curiós? Um missionário da Assembleia de Deus que foi orar e viu nas labaredas algum sinal divino? Que delírio, meu Deus, um escritor adulto, que vai pôr filhos no mundo, em vez de se preocupar com a destruição da Mata Atlântica, com os riscos das gerações futuras ficarem sem oxigênio e água, só consegue fazer do incêndio uma imagem poética. Só consegue pensar que esse fogo poderia ser o despertar do vulcão. Só consegue pensar na lava escorrendo serra abaixo, torrando o Mendanha, a estrada de Madureira, os velhos laranjais que agora são bairros perigosos, o shopping Nova Iguaçu e milhares de barris de chope bares a fora, nessa cidade de habitantes alcoólatras. Olho pro menino, estalo os dedos e digo, temos uma história. Digo isso já me encaminhando pro notebook. Essa é a história de hoje, menino, o vulcão acordou, acordou e vai lamber a cidade. Vai pra janela, menino, e me diz o que você vê no meio desse fogo. Anda, menino, me dê um conflito pelo amor de Deus. O menino estica os pezinhos e coloca o queixo no parapeito. Vai logo, cacete, o que você vê? Um bombeiro herói? Helicópteros levando os ricos embora? Os crentes gritando que o Apocalipse chegou? Uma mãe que morre pra salvar seu filho? Um cão derretido pelo fogo? O menino dá um sorriso. Parece não ter pressa de nada. Eu vejo a via light vazia. Discordo dele, a via light nunca está vazia a essa hora. Então ele refaz sua frase: vamos supor que a Via Light esteja vazia. Eu aceito e escrevo. Que um Siena branco fura todos os sinais vermelhos e chega mais rápido ao Bairro da Luz. Que estaciona em frente ao prédio e de dentro dele sai um homem apressado, que sobe ao décimo quinto andar e entra no apartamento vazio, que afrouxa a blusa, toma uísque, ouve jazz, fuma cigarro, observa pela janela o fim do dia urbano mais comum, até que se depara com um incêndio na mata, um incêndio que pode estar matando animais, plantas e invadindo casas, enquanto ele, o homem, está em seu esconderijo de cinquenta metros quadrados, com uma geladeira cheia, com uma faxineira semanal, com uma vista privilegiada, e é desse impulso sádico que carrega desde a infância, de estar seguro enquanto três milhões de pessoas podem morrer queimadas, que se permite imaginar o pior: o vulcão despertando e lambendo a cidade, todos mortos e ele vivo, escondidinho assistindo o caos, e enquanto assiste, escreve, escreve e escreve, como se apenas este conto fosse capaz de salva-lo de sua vida insuportável.

P.s.: após releitura, o escritor decidiu queimar também este conto.