Militar espelho

O espelho

Inspirado no conto homônimo do mestre Machado de Assis.

Desde cedo sabia que teria um objetivo: ser militar. Era nessa atividade que, segundo meus pais, a vida teria uma finalidade: servir a pátria. Me dediquei e passei nos concursos com louvores. Fui para a academia. Aprendi a reproduzi os lemas que para mim eram caros: disciplina, ordem, hierarquia e tudo que cercava essa única lógica. Se tornaram minhas leis supremas: respeitar normas e regras>uma vida reta, equilibrada, sem tortuosidades, sem curvas acentuadas. afastei-me de tudo que não viesse em direção à esses fins>nada de festas, nada de álcool, nada de paixões, nada de exageros que me desviassem de meu reto caminho.

Um dia, olhei-me uniformizado no espelho que dominava o centro da sala onde morava. Percebi com orgulho e garbo o equilíbrio do corpo e das medalhas, brasões e galardões que ornamentavam meu uniforme. Todos brilhavam e observei a simetria do meu ornamento. Uma verdadeira obra de arquitetura clássica. No espelho, reluziam a ordem e a disciplina. Os órgãos dos sentidos íntegros, dominados pela razão, e pelo intelecto. Uma perfeição… uma sobriedade. Era assim que me sentia. Porém, percebi algo estranho: não havia no reflexo a minha face> na altura do rosto, somente um borrado disforme, como uma pintura de Francis Bacon, vestido num uniforme militar. Uma massa amorfa, grotesca e indefinível ocupavam o lugar de meu rosto. Pensei que fosse uma sujeira e tentei limpa-la, mas apesar de meu esforço, nada fazia o espelho revelar minha verdadeira face. Inconformado, deixei aquilo de lado. Apesar de confuso, sem saber explicar o porquê daquele estranho fenômeno ótico dentro de minha mente cartesiana.

Na ausência de guerras para provar minha coragem e amor à pátria, me arrastei na minha vida monótona de militar de escritório, dando e recebendo ordens; polindo minhas botas; luzindo medalhas, meu cinto, tomando cafezinho, e reclamando do governo. Certo dia me convidaram para uma festa, e abrindo mão de minhas convicções, talvez pelo enfado que carregava, aceitei ir com meus camaradas de caserna à um bar. Nunca havia tomado bebidas alcoólicas, mas confesso que nesse dia exagerei. Senti uma estranha sensação: tudo rodopiava ao meu redor. Era a vertigem>senti pela primeira vez, que eu não era eu, e assim, me senti liberto de todos aqueles signos, uniformes, medalhas, que sempre havia valorizado. Cheguei bêbado em casa e dei de cara com o tal espelho. Foi então que observei que minha face estava parcialmente reconstruída, onde haviam fragmentos sobrepostos, como uma pintura cubista. Toquei na superfície do espelho e senti minha mão ultrapassar a imagem, com se houvesse um outro espaço por detrás do espelho. Ao perceber isso, parei e recuei com temor. A partir daquele dia, passei a beber sem limites.

A vertigem parecia ter tomado conta de mim>todos os dias, retornava de meu enfadonho ofício e, bêbado, parava em frente ao espelho e observava com surpresa que a imagem de minha face se reconstruía pouco a pouco, como se uma mão misteriosa montasse um mosaico bizantino. Dessa vez, toquei o espelho e aprofundei meu braço, que afundou além da superfície do espelho. Senti algo que me puxava para dentro do “universo” que existia, por detrás do espelho>me espantei no início. Tomei mais alguns goles e a vertigem tomou meu ser. Senti, pela primeira vez na vida, que talvez eu fosse de fato eu. Vi então a imagem de minha face totalmente reconstruída. Finalmente, tomei coragem (como nunca havia sentido antes) e pulei, me precipitando de encontro com o espelho, sendo imediatamente tragado pelo redemoinho vertiginoso da imagem que se formara no espelho. Nunca mais fui visto novamente. Dizem que militares foram ao meu apartamento, investigar meu desaparecimento. A única coisa que constataram foi meu uniforme de militar na frente do espelho e algumas garrafas espalhadas. Fui dado como fugitivo. Um inquérito foi aberto, mas ao fim de meses de investigação e hipóteses vazias, meu paradeiro não tinha sido esclarecido. Concluíram que não havia conclusão alguma sobre o caso que foi, ao fim, arquivado.