Brasília vermelha

Opções duvidosas

Escolheu tirar o final de semana pra descansar, mas a família tinha outros planos. Programara encher a barrica no rodízio de pizza, no Shopping Nova Iguaçu. Vencido pela democracia da maioria, retirou o carro da garagem, deixou no retrovisor a praça de Areia Branca.

Na altura da Prata a família foi fechada por um sedan, com uns quatro caras problemáticos dentro. O pai, ao volante, continuou na pista, porém a viagem terminou metros à frente, com a truculência dos meliantes do automóvel de quatro portas. Chegaram de arma em punho, obrigando os passageiros a desocuparem o veículo. Um dos ladrões encapuçados deu três tapinhas nas costas do professor de geografia, forjando uma intimidade estranha…

Após o assalto refugiaram-se no Posto Treze, sem um puto no bolso, pois a carteira ficara no painel. Resolveram andar até a Areia Branca… Em casa, reuniram os documentos, registraram queixa na 54° Delegacia de Polícia Civil de Belford Roxo.

A Brasília vermelha, 1980, motor 1600 — sem seguro — era parte do lar; levara os noivos ao altar, acompanhara o nascimento da filha única do casal, transportava o grupo pra praia, representava a mobilidade do clã. Estava naquele endereço, fazia muito tempo…

O sentimento de perda trouxe tristeza, no entanto a vida continua: o professor leciona as aulas, a adolescente vai ao Funk, a mãe permanece advogando, o cachorro manteve o hábito de cagar na sala. Tudo corria normalmente…

Passaram uns quinze dias, o Sol rachava o asfalto, as coisas aumentavam de preço, o povo cada vez mais pobre, os políticos sempre roubando, a sociedade sujeita ao lugar comum. Ninguém aguardava nenhuma novidade, quanto mais dar de cara com a Brasília vermelha, estacionada, no portão de casa! A exclamação do sábado vinha com a chave na ignição, surpreendendo os atores do episódio. Rapidinho, coisa de carioca, os sortudos organizaram uma festa de pobre, regada a cerveja barata e salgadinho de farinha de trigo.

O professor, que acreditava no bom coração, defendia com unhas e dentes, a evolução da humanidade… Ele dizia, em voz alta, ter sido retratação, que os marginais desenvolveram a consciência de classe, o amor ao próximo!

Verificaram o interior da Brasília, até os livros, caríssimos, permaneciam intactos, um verdadeiro milagre! Agora, um choque eletrocutou a alma, na hora da abertura da mala, porque sobre o estepe encontraram um envelope. Escondida, no papel pardo, repousava uma carta endereçada ao proprietário. Depois de várias considerações… O portador de uma caligrafia horrível, o assaltante, escrevia as experiências dele como aprendiz daquele profissional de educação. O estudante do ensino médio, cooptado pelo crime, possuía uma trajetória de aluno, junto ao mestre de geografia. Confessava cabular as aulas, jogar bolinha de papel no momento da explicação, pichar a escola; sobre tudo, negligenciar os conselhos do educador… Terminou a redação, teimando, em oposição à ciência: ser a terra plana; por isto temia a observação do professor, de qualquer ponto do planeta…

No fundo da embalagem, um presente, três convites do show do Seu Matias, no Centro Cultural Donana, às 21h. A garota pulou de alegria, o pai escolheu ficar na residência, contudo o gesto de paz merecia comemoração. O intelectual cedeu à escolha dos outros, foi dançar…

Vestiram os trajes pra ocasião, foram, a pé, pra balada; Seu Matias tocava o espírito do povo da Baixada Fluminense, o sábado prometia… No retorno, a história degringolou, a casa colocada de pernas pro ar, roubaram até a cueca furadinha, fizeram a limpa; ainda usaram a Brasília para transportar o roubo. Restou uma mensagem riscada na parede: “Tem razão, professor, a Terra é redonda. Vou pro Japão, de lá estou a umas 24h de você, não há ângulo pra me ver…”