Onde? Quando? Como? Quando fui dormir estava solteiro e, agora, acordo casado! Sinto que não sou mais tão jovem. Recorro ao espelho e, que absurdo, não reconheço o reflexo. Estou nu e exposto ao mundo em plena manhã de sábado, pois não sei nem por onde andam as minhas roupas. Aquele espelho não é meu e não me lembro de nada daquele apartamento. Sinto que sou alguém famoso que mora em frente ao mirante e vê vizinhos sorridentes nos apartamentos em frente. Todos por ali parecem me conhecer bem. Eles acenam, saúdam e me cumprimentam por quase tudo. Há paparazzos de plantão e insistem em me fotografar daquele jeito, pelado. Enrolo-me com a toalha de mesa e improviso uma toga.
O meu cachorro me reconhece e vem me lamber os pés. Várias estampas recortadas de artigos de manchetes estão descartadas sobre a mesa. Há capas de revistas sobre famosos mostrando rostos ainda estranhos pra mim: dele e dela, Serena de tal, em umas e, em outras, crianças nos rodeiam! Quantos? Vejo filhos que não conheço. Como? Quando? Então, filhos surgem do nada e me enchem de beijos e eu sem saber quem são e como os adquiri. Sinto que ainda sou o eterno amigo do nada e inveterado opositor de compromissos sérios, então, o que está acontecendo? Que pegadinha louca é essa? Onde estão as câmeras escondidas? Foi ontem, ou anteontem?… Talvez, somente agora… Quem sabe já é o amanhã? Ouço sons estridentes e intermitentes de celulares que tocam quase todos ao mesmo tempo, são três… Como pode ser isso? Eu que, até onde sei, só tinha unzinho, agora todos tocam os meus recados eletrônicos e é a minha voz que ouço ali. Descubro-me um cidadão respeitado. Os meus inúmeros contatos estão relacionados na agenda eletrônica repleta de recados dos meus procuradores com suas
mensagens imperativas… Penso em fugir e ganho às ruas ainda de toga e sou cercado por estranhos e dou autógrafos aos montes, mas esqueço do meu próprio nome, ainda assim um nome estranho insiste em ser escrito em papéis que fogem das minhas mãos. Volto pra casa e pra Serena, que ainda dorme. O seu semblante está sereno. Ela enfim desperta. Está absolutamente desnuda. Mas quando levanta já não é
mais ela, é a minha própria imagem que eu vejo se espreguiçando na minha frente e… Estou visivelmente excitada; não, excitado… Examino-me rapidamente nas genitálias e dou com o vazio, mas sinto que transei comigo e sinto felicidade nesta constatação. Recorro ao espelho e descubro que não sou eu nem ela, sou a outra – a Marina – e fico fazendo poses de gostosona diante do grande espelho, já prontinha para o banho de beleza. Fico contente e serelepe tomando banho na banheira e fazendo brincadeiras de águas, espumas e bolhas de sabão, cercado de patinhos e barquinhos de plástico, pois agora sou um nenê pimpão, até que mamãe vem me tirar do banho… e já não é a minha mãe que me olha com cara de dengo-dengo – hora de mamar… é… um bicho papão facetado no patinho de brinquedo querendo me pegar. Engatinhando, fujo deles; num segundo é um no seguinte é outra… Escondo-me no armário embutido e lá permaneço quietinho na escuridão, dando tempo ao tempo, até que vejo vir se aproximando um facho diáfano de luz apontando fininho como uma linha lá embaixo junto aos meus pés e subindo, ao mesmo tempo em que luzes pequenas vão transitando de cima pra baixo num painel fixo num canto à direita. E já não é mais o armário em que me encontro, pois me vejo num elevador e sou o ascensorista pisca-pisca, que estava lá dorme não dorme… Desperto abruptamente da sonolência, deixando a revista de artistas que dormitava comigo sobre o meu colo despencar, caindo com a página escancarada a me mostrar manchetes sobre famosos. Estava no fim da minha resistência. Havia dobrado o plantão e ainda tonto pelo efeito colateral do tal estimulante – bomba. Sinto presenças inquietantes e densas, são sombras ou sobras do passado. A luz pisca fixamente no número quatro e para no quarto andar. Pressinto que jamais saíra daquele hiato de tempo e espaço, preso à coisa que não consigo alcançar. É algo metafísico. O mostrador sinaliza números; são apenas traços avermelhados o que vejo e o tempo parece querer parar lá dentro, mas o relógio digital marca a contagem progressiva: … 12:03:03… 12:03:04…; as portas automáticas se abrem e vejo ninguém no saguão… Em frente só um cartaz anunciando um novo evento sobre experiências de dominação mental… Confirmo o evento com o que está anunciando um panfleto em minha mão, enxugo a minha testa com ele, amasso-o, em seguida coloco a bolinha de papel no bolso da camisa, vejo ali um crachá dependurado: traz a foto do funcionário… Sim! Reconheço-me. Ouço vozes femininas e passos agudos de saltos de sapatos… Penso já ter vivido aquilo antes, qual um sonho… Um grito uníssono se segue: DESCE!!!
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