Na madrugada tem aquela escapadinha furtiva para atacar as delícias do fim de noite, aquele gostinho, de quero mais. que fica quando o sono bate e você é obrigada a interromper a aventura. Levanto-me em silêncio e vou pé ante pé, evitando esbarrar nas coisas e provocar algum tipo de acidente que venha a chamar a atenção e acordar alguém, principalmente mamãe, que certamente irá me interromper e fazer aquela conhecida e chata ladainha contra a gula e o apetite insaciável. O sofá é meu local de desleixo predileto. Gosto daquele de dois lugares, amarelo gema, de espaldar alto e confortabilíssimo, que cabe – cabe não é o termo apropriado, o termo correto é acomoda – meu corpinho um tanto quanto volumoso devido às minhas práticas as rotineiras de mocinha preguiçosa, sequiosa, famélica e avessa a exercícios físicos, que me permite espreguiçar e passar longas e longas horas em repouso absoluto degustações. Lá me refugio quando a casa está cheia e desejo me isolar e provar minhas delícias prediletas. Este vício me consome e domina de uma forma tal que me é impossível resistir. Minhas rotinas de mocinha esganada são cumpridas fiel e diariamente em longos e á idos rituais que me transmitem prazeres e ao contrário do que todos pensam: nenhum remorso, nenhuma culpa ou dor. Não existe nenhuma possibilidade de abandonar este delicioso vício, que pratico com sofreguidão e voracidade.
Tenho o sono interrompido todas as noites para complementar minhas ansiedades com o que habituei-me a chamar de “beliscos da madrugada”. Ah! A madrugada é o melhor horário, todos dormem. Não aparece ninguém para interromper e ficar fazendo perguntas ou comentários idiotas que desviam a atenção e fazem perder o foco. Não tem o telefone, e, supra sumo dos deuses, tem o silêncio. O silêncio é um presente, um mimo que nós devoradores recebemos do criador. Naquele momento de reverência e adoração o silêncio é tudo o que se pode esperar: tudo aquilo que contribui para que se possa desfrutar de momentos únicos e recompensadores que só quem é um devotado praticante como eu pode entender.
Mamãe vive a me atormentar, exigindo que eu pare com estas práticas a seu ver perniciosas, doentias, viciantes e, segundo os padrões dela, nada, nada saudáveis. Me critica por perder minhas noites de sono. Implica quando vou ao Centro, e demoro horas e horas babando as mercadorias nas vitrines e volto abarrotada de volumes e bolsas. Diz que gasto meu parco dinheirinho em coisas que na maioria das vezes não uso e que acabam largados a um canto do armário, que compro as coisas por pura gula, avidez – a palavra correta utilizada por ela é: “esgulodices”. Sinceramente, do fundo do meu ser, gostaria de saber o porquê de mamãe implicar tanto com meus hábitos, com o que devo ou não devo fazer. O que ela tem a ver com a quantidade de livros que compro? Se os leio ou não? se os deixo largados pela casa, se acordo de madrugada para terminar de ler aquela história interessante que não me deixa pegar no sono a noite, os “beliscos da madrugada”?
O que posso fazer se tenho esta paixão desmedida pela leitura, um apetite sem fim por livros novos, por novos livros e novas histórias? Esta gula desenfreada e algo de ruim? Não posso entrar na livraria e levar tantos quantos livros puder levar? Faz mal à saúde a gulodice literária?
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