mãe favela barraco

Infortúnio

Ele arregala os olhos para o teto de zinco furado… A primeira visão que tem do mundo. Ao canto da tarimba, a jovem mãe chorava copiosamente… Pode se dizer que de emoção… Afinal pavor e desespero também causam emoções.

Recebeu o nome de Benedito! Até hoje não sabe dizer se foi pela devoção da mãe ou pela cor do santo. Pai…? Nunca soube se existia… Só mãe e avó… Dona Gertrudes, aquela que dizia para sua mãe, todos os dias, repetidamente, como se fosse um mantra:
— A vida já tão difícil e você ainda tem a coragem de arrumar mais uma boca pra comer! — E ainda acrescentava — E o diabo come… Come como se fosse rico!

Bené, como habituou a ser chamado, lembra as injurias da avó. Com as pontadas da injustiça perfurando a alma. Não que se achasse bonito de fato… Mas “diabo” era ofensivo por demais da conta… Ele faz um exercício mental tentando lembrar de algum momento que recebera um sorriso, um afago da avó ou da vida… Alguma coisa parecida com um agrado, elogio… 

Uma vez… Teve uma vez na escola…  Ele olhava intensamente para a recreadora e ela comentou com a colega ao lado:
— Ele tem olhos grandes, bonitos!
Quem? O Benedito? — Pergunta a outra, abismada.
Não! – Respondeu rapidamente a moça. —  Aquele loirinho ali, atrás dele.

Por fração de segundos, Benedito experimentou a sensação de ter alguma coisa de bonito! Mesmo que por engano.

Ah! Houve uma outra vez, na adolescência, quando vendia flores na feira… Uma menina linda pegou na sua mão! Duas vezes; uma para dar o dinheiro e a outra para pegar o troco…  Ah! Ele lembra que ela o chamou de lindo! Foi fantástico! Na verdade, ela apenas disse “lírio”… O nome das flores que desejava… Parece que tudo de bom que lhe acontecera na vida era por engano…

Talvez a sua própria existência, tenha sido um grande engano; não só da sua pobre mãe, mas como do próprio Ser supremo. Ou não! Pensa Bené, já que Esse nunca comete enganos. Talvez tenha sido de proposito mesmo! Imagine… Uma legião de anjinhos lourinhos com harpas decorando o céu e ele ali, no meio, com cara de diabo, como dizia a sua avó, destoando do cenário celestial. E como nada que é feio provém Dele, o lançou dos altos das nuvens direto ao barraco da favela, onde não se pode negar, combinava bem mais com o cenário.

Aos três anos foi trocado por uma pedra de crack…  Aos seis foi contratado para esmolar em frente ao banco. E aos dez vendia bala na linha do trem.. Triste!… Aos onze, doze, treze… Triste,.. quinze, dezessete, dezoito… Triste existência.

Mas hoje… Tudo isso ficou no passado!

Benedito da Silva, como agora exige ser chamado, irá se casar com Rosinha, filha do dono da birosca, Seu Délio! Esse senhor estava muito doente, precisava de um rim. Ao saber que Bené tinha o tipo sanguíneo compatível com o do seu pai, Rosinha fez a proposta:
— Doe um rim pro papai, Bené, que eu me caso com você, meu lindo!

E assim foi feito de fato! Quero dizer, só a parte de doar o rim. Quanto ao casamento… Bem, foi marcado pra hoje, dia vinte de maio de 2025. Bené acordou cedo e foi até a casa dos futuros sogros levar o par de alianças polidas. Mas um homem estranho lhe abriu a porta da casa dos pais de Rosinha e lhe informou que comprara toda a propriedade e que Seu Délio viajara de madrugada com a família!