Houve uma época em que diariamente fazia o trajeto de trem de Nova Iguaçu à Central do Brasil. Certo dia, após embarcar, sentei-me ao lado de uma idosa senhora. Vestida humildemente, parecia estar dormindo mas estava acordada, apenas com seus olhos fechados. Seus cabelos bem pretos e a cor de sua pele, além da face com muitas rugas, sugeriam ser de descendência indígena. Minutos depois abriu os olhos e, ao me ver, cumprimentou-me. Com olhar tristonho me perguntou quantas estações ainda faltavam para chegar à Central. Prontamente respondi que ainda faltavam muitas. Ela parecia preocupada com o horário, talvez um compromisso agendado. Iniciamos uma conversa. Ela me disse ter 75 anos e que “morava de favor” em Japeri, na casa da irmã do seu finado marido. Estava indo trabalhar como doméstica em Copacabana e essas viagens, cinco vezes por semana, a cansavam muito. Mas não tinha jeito. Tinha que trabalhar para ajudar nas despesas da casa de quem a acolheu após perder seu companheiro. Olhando-a mais fixamente e ainda curioso por saber de sua ancestralidade, perguntei:
– A senhora é de família indígena? – Ela respondeu sim.
Após uma pausa, perguntou-me:
– Em que estação estamos?
Respondi:
– Engenho de Dentro.
– Então, ainda dá tempo para contar minha história. Nasci em uma das aldeias da tribo Pataxó, no extremo sul da Bahia. Infância e mocidade aprendendo os costumes e vivenciando problemas, alegrias e tristezas comuns aos indígenas. Um dos nossos principais desafios eram com “os brancos”. Invadiam nossas terras, garimpavam e caçavam ilegalmente e, quando revidávamos, o conflito gerava pânico em nossa aldeia e em outras próximas. Resultava em mortos e feridos, de ambos os lados. Tinha na época 25 anos quando, em um dos confrontos, aconteceu o que mais temia: meus pais e irmãos foram mortos e nossa aldeia praticamente destruída. Os poucos sobreviventes fugiram para uma aldeia próxima. E eu fiquei sozinha, sem ter para onde ir e sem saber o que fazer.
Já estávamos na estação Maracanã e eu atentamente escutando sua triste história. Percebi que lágrimas desceram de seus olhos quando contou. Um homem branco, mais ou menos de sua idade, que havia desertado de um grupo de invasores, delicadamente lhe perguntou:
– Quer vir comigo? Estou cheio disso tudo. Matei muitos indígenas. Quero começar uma nova vida, não matar mais meus semelhantes.
Espantada, olhou para o semblante daquele homem, um dos algozes das aldeias próximas, estava ali propondo cuidar de mim e ter outro tipo de vida. Sem escolha, tinha que confiar em alguém. E foi assim que fui morar com ele em Japerí, na casa de sua irmã. Nos casamos e vivemos felizes até sua passagem.
Saltamos na estação Central do Brasil. Ainda perplexo com o drama que me foi contado, apertamos as mãos, nos despedimos e cada um seguiu para o seu destino.
Parabéns pelo belo conto!!