Quando saí definitivamente de casa foi ao que parece a primeira vez que pus os pés na rua. Ou a casa é que saiu de mim.
Dizem que casa é refúgio, refúgio é lar, lar é sagrado. Num lar que tortura não há lar. É possível ver fora tudo o que não se sente dentro. Não havia janela na vida, tampouco portas. Na rua vejo o baralho completo de uma forma que não se vê em casa. É possível saber exatamente quem dá as cartas e quem só as recebe. Não mais aquela avó cachaceira que soltava as fumaças para cima dos parceiros de jogo e crime nos fundos do quintal em cima das mesas de ferro velho. A rainha de copas e ouros dava as cartas e me obrigava a ser empregado, faxineiro, garçom e refém. Nunca soube ler. O que me lembro é de estar sempre aqui proibido de ir para fora. Esperei que ela tomasse mais da vodka, mais do cigarro, mais das outras coisas e desabasse no sono porco. Antes consegui fingir que o cadeado estava fechado, mas não estava. Peguei duas camisetas, uma garrafa de plástico, cinco cuecas, uma bermuda jeans, escova de dentes, baralho e fugi.
Meu pé de tênis de mola conduz na poeira a carroça que apenas imagino. Na rua circula o ar que não circula porta adentro. Quando fugi era pra ser despercebido. O cachorro sem pelos latiu. O meu filho começou a chorar como se pedisse que eu ficasse. Dizem que ser adulto é coisa de maluco. Nunca tive cachorro. Nunca tive filhos.
No baralho os naipes são estações do ano e elementos da natureza. Ouros é primavera e terra. Paus é verão e fogo. Copas é outono e água. Espadas é inverno e ar. Avó maldita que eu ainda não sabia que era o que era. Quando ela me cortou com um 4 de paus minha pele fez uma linha de sangue, fogo na alma. Quando quebrei dizendo que foi sem querer o que foi por querer o galão de vinho ela me afogou na pia da área, uma rainha de copas. Na rua sinto espadas, as cores do inverno, os ventos batendo nas paredes.
Me conformo e divido o banco do ponto de ônibus com um vira-lata como eu. Ele não late. Rosna baixo. Percebo que para o vira-lata não existe ir para rua. Tudo é casa. Faço amizade também com as paredes. A sem cor é triste. A grafitada é viva. A pichada se envergonha. Noto que as paredes das ruas nascem de fato quando passam por artistas.
Me alimento de sobras, o que é melhor que antes. Me sinto o rei do meu mundo. Preciso de cama, de trabalho, de pão. Tenho verbos e adjetivos na pequena mochila e foi com eles que consegui um bico de limpador de calçada de boteco de bacana de um cara mais bacana que os que chamam por aí de bacanas. Ele sorriu pra dentro de mim como se eu fosse avenida e ele motorista de ônibus, um tipo que ama fazer açúcares debaixo da língua. Em pouco me ofereceu mais. Pelo dia de lua minguante eu já mentia que morava numa casa do morro e eu nem sabia que por onde sobe nesse morro que chamam de Coréia. O bacana foi babaca. Eu já limpava o banheiro dos mijões que bebem pra compensar o fato de serem babacas. Ele entrou, trancou a porta, desceu minha bermuda e me atacou de frente e eu, dessa vez sem querer, ajoelhei o queixo dele que desabou feito castelo de cartas marcadas. A rua era melhor.
Corri alucinado como se fosse um desses veículos donos da cidade. Porque ela, a cidade que acumula ruas, é feita para os motores, não para pés. Foi do lado esquerdo que uma moto branca me atravessou. Quem viu se compadeceu. O baralho sujo espalhado ao chão. Quem dava as cartas era a rua. Aquele asfalto foi o primeiro abraço que ganhei.
De novo: rua. Após hospital, remédios e gente de verde, rua. Deu no jornal que eu vivia desde criança em um cativeiro e que a sequestradora morreu. Vó morreu. Aquela mesa de ferro manchada de nicotina desmontou. A casa desabou. Descobri que o baralho vermelho representa o dia e o preto representa a noite. O da minha vida era sem cor. Não há jogos entre o meio-fio e eu. Passei a fugir de quem me vê: da polícia, dos playboys, dos pastores, dos turistas, das chuvas, dos ases, do sol. Quem não me vê se me vê me acha bobo ou louco. É, não dava mais. Com minha história fiquei famoso. Me ofereceram pra dividir uma quitinete. Um sobrado. O quarto de empregada. Não sou casa, não sou rua. Decidi viver num quiosque na beira da rodoviária de ruas fechadas. No mundo real sou carta fora. No meu mundo sou bobo ou louco. Sou a única carta que fica de fora: o coringa.
É ruim rejeitar quem a gente quer. É muito ruim ser rejeitado por quem a gente quer. É pior ainda ser rejeitado por quem a gente não quer. Nem a rua me quis. A carta rejeitada pelo baralho precisa de um novo.
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