Cessam os sons. Isto é, o atrito de talheres metálicos contra os pratos de vidro. Ou a conversa jogada fora, que envolve geralmente o que fizemos ao longo da semana em nossas tarefas diárias. Persiste apenas uma música erudita que não sei o nome que toca no vizinho do lado mas não incomoda, realmente mal dá pra ouvir. Chega a nós justamente porque fazemos silêncio.
Os cheiros abrem espaço ao tato por um tempinho em que o que realmente se passa com todos nós é a barriga cheia. A cadeira macia nas costas e a desvalorizada sensação de barriga cheia como se o dia de hoje tivesse sido uma vitória, não importa o que aconteceu. E ficamos, “nossa, comemos demais”, e tal, com a atenção em nossos estômagos que trabalham e atrapalham que o resto de nós trabalhe também.
Isso dura pouco porque logo vem o café, e antes dele, o cheiro de café: aquele familiar amargor que quase se sente na boca. Minha mãe ligeira passou um café, as frutas acabaram e eu tratei de comer o último chocolate. Sem sobremesa, nada melhor que um cafezinho para apaziguar o Deus-corpo que nos governa. Levanto e trago a chávena para dividir com todos, embora meu pai não beba porque deixa os dentes amarelos e dentes amarelos são ruins para homens de negócio.
O paladar confirma a cabeça e o sabor acre e intenso do café sem açúcar limpa os restos do que quer que tenha sido que comemos antes, a essa hora já nem lembramos mais. O líquido desce pela garganta e nos esquenta por dentro, mesmo sem fazer frio. Outro gole vem como um amigo ou parente que nos diz para descansar, porque é domingo.
Sobre a mesa de jantar, há talheres e pratos, e restos do que foi a refeição: alguns ossos carcomidos indicam que foi frango; os poucos grãos de arroz denunciam a sua presença; junto com o que sobrou de algo verde claro. Já nem dá pra saber ao certo o que era. Também não há sinal nenhum de que comemos tomate, completamente devorados.
Não agradecemos. Nunca agradecemos a seres intangíveis, embora minha mãe tenha se tornado mais religiosa com o tempo e o meu pai tinha descoberto uma espiritualidade dentro de si. O que eu quero dizer é que nós sempre agradecíamos, não a deidades mas a nós mesmos, através do olhar. Ainda assim, depois do almoço cada um queria voltar correndo aos seus afazeres ou ociosidade, até eu, contando isso agora, não posso fugir. Exceto minha mãe: já depois do ônus de fazer tudo, havia agora o ônus da parte ingrata de toda reunião que é limpar o que sobrou.
Nós éramos nós. Mais que apenas uma família: éramos uma família perfeita. A ideia de perfeição me leva para um lugar de coisas horripilantes. Quando penso nessa palavra, me vem um sorriso branco, imóvel e mentiroso. Também imagino um diamante. Faces esculpidas de forma impecável, valor incalculável. E ainda assim, sangue em sua história, de tanta gente que morre para que ele possa existir. A perfeição formada de mortes invisíveis, que esquecemos por opção. Quando penso que éramos perfeitos é só nostalgia, não éramos. Ou melhor, éramos perfeitamente normais. O mundo tem dessas ironias. Tudo que é normal e perfeito esconde a mais terrível sinceridade.
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