Confissão

A velha senhora caminha devagar pela longa estrada de terra batida, respira, inspira, cansaço…

Andejava por horas, em busca de alivio, de perdão para a sua alma. O corpo curvo arrastando o fardo, o peso dos próprios passos. Ela percebe os sinais. Pressente a chegada da visita derradeira, mas o que ela teme não é a morte, só o seu passado a aterroriza. Ela precisa livrar-se daquele segredo que carregara desde a juventude. Esta manhã Dona Capitolina, acordara decidida e diante do espelho gritara aos seus fantasmas: “Eu não quero, eu não vou levá-los comigo para eternidade”. Após isto saiu à procura de auxilio, de amparo espiritual. Ao longe ela avista a rústica capelinha do Padre Eufrásio. Sorri e caminha um pouco mais animada, embalada por lembranças, ora boa e agradável como agora. Dona Capitolina rejuvenesce uns bons anos ao lembrar-se do marido, dos tempos áureos da vida em comum. Uma vida plácida sempre na companhia de familiares e de amigos. Costumavam ir a espetáculos e serões ou simplesmente ficavam as noites à janela, no belo bairro da Gloria admirando o mar, o céu, as lindas montanhas, os navios e até mesmo as pessoas que desfilavam pela orla.   Às vezes ele lhe contava a história da cidade. Em outras, dava-lhe notícias de astronomia, notícias do ”Jornal Amador” que ela escutava atenta. Às vezes cochilava, mas era tão rápido que ele nem notava, concluiu ela em seus pensamentos com um leve sorriso.  Agora já na pequena capela, ela experimenta algo bom; quase uma leveza. O pequeno altar coberto por uma linda toalha de renda, A imagem da Madona rodeada de anjos e lírios. O Padre Eufrásio compenetrado em suas orações surpreende-se com a recém-chegada. Ela apressa-se em cumprimentá-lo:
– A bênção senhor padre!– E se curva ainda mais  beijando as mãos do sacerdote com reverência.
– Que Deus a abençoe minha filha! Quer um café. Uma água? – O Padre percebe o seu cansaço.
– Obrigado, santo padre! – Preciso apenas de absolvição para os meus pecados! Preocupado o padre a conduz até o confessionário onde ela já começa dizendo:
– Perdoe-me, Padre, porque eu pequei!
– E qual foi o teu pecado minha filha!
– Eu trai o meu marido! – Disse em um fôlego só para não perder a coragem. O sacerdote imaginando que idade deveria ter aquela senhora pergunta:
– Há quanto tempo se deu esse pecado?
– Há quarenta e cinco anos padre!!, Faz bastante tempo eu sei, mas a cada ano este peso se torna ainda mais insuportável! Eu era bem jovem quando me casei, lá no Brasil, minha terra natal. – Ela se indireta a cadeira, o Padre percebe que iria ser longa a confissão. – Conheci meu marido ainda criança desde quando Seu Pedro Albuquerque e Dona Gloria resolveram construir um casarão na minha rua. Eles eram bem de vida e faziam parte da elite do Rio de Janeiro. Já a minha família era bem humilde. Meus pais sonhavam com a possibilidade de nosso casamento vislumbravam ali uma ascensão social, porém havia um grande empecilho: A Dona Gloria, minha futura sogra após perder o seu primogênito fez uma promessa, que se tivesse outro filho varão, ele seria Padre, e por isso não víamos  jeito  de nos casar mas mesmo assim, antes de ir para o seminário Bentinho me beijou e me prometeu casamento. O período que se seguiu foi muito difícil. Eu fiz de tudo Padre! Preces, simpatias até mesmo um trabalho no terreiro da mãe Cotinha para ele voltar e para que nos casássemos. Em um belo dia, Bentinho junto com Ezequiel, um amigo que fez no seminário, sugeriu a Dona Gloria que propusesse ao Padre Cabral uma substituição: Um menino órfão se tomaria Padre no lugar de Bentinho e para nossa felicidade depois de consultas, o Bispo o liberou da promessa. Foi quando conheci Ezequiel e o apresentei a Sancha a minha colega de escola. Eles se enamoraram e  nós quatro nos casamos e fomos felizes por algum tempo, Sancha e Ezequiel não demoraram a ser pais e  logo tiveram uma linda menina. Imagine Padre! Deram o meu nome a ela, isto foi muito carinhoso  da parte deles.
– E vocês? Tiveram filhos? – Indagou o Padre. Ela ignora a pergunta e continua a narrativa.
– Bentinho era louco para ser pai. Todas as noites ele rezava com muita fé pedindo a Deus que lhe desse um filho “Um filho forte, robusto Senhor” Ele dizia em suas orações  nos primeiros anos de casados. Eu ficava a ouvi-lo rezar com o coração dilacerado. Tudo que queria era fazê-lo feliz, mas não conseguia engravidar por mais que tentássemos que rezássemos. E  os anos passavam… Passavam…  E as suas preces aos pés da cama mudavam “Um triste menino que fosse amarelo e magro, mas um filho, um filho próprio da minha pessoa”.  Já não suportava mais vê-lo sofrer e foi então que pequei Padre! Resolvi pedir auxilio ao nosso melhor amigo.  – O Padre a ouvia atento. – Pedir a Ezequiel que me ajudasse a realizar o maior sonho da vida de Bentinho. Pedi para ele Padre me ajudar a tornar meu marido pai!  Muitas tragédias aconteceram a partir de então.
– Como o que? – Quis saber o Padre.
– O menino nasceu forte e bonito! Em retribuição ao carinho do casal de amigos que  batizara a filha  com o meu nome, Bentinho fez questão de chamar o nosso filho de Ezequiel. Ela faz uma pausa e o sacerdote aguarda passivamente: – À medida que Ezequiel ia crescendo mais se assemelhava ao pai, “ao nosso amigo” e não era só a aparência. Haviam os jeitos, os trejeitos. O menino gostava de brincar imitando as pessoas e em especial ao tio Ezequiel o que tornava evidente para todos tamanha a  semelhança.  Ela respira fundo e prossegue: – Com isso o meu casamento acabou Padre! Bentinho ficou amargo e infeliz. Odiava a mim e ao meu filho.  Suspeito até que tentou matá-lo uma vez.  Nesse momento os olhos dela se apertaram. Havia muita dor naquela mulher – Nosso amigo Ezequiel foi  fulminado pelo remoço e pela culpa suicidando-se no mar. Por vergonha Bentinho obrigou- me a deixar o meu país, a minha família e meus amigos. Hoje vivo aqui sozinha em Braga. Não  penso mais em voltar ao meu País.
Depois de ouvi-la o padre a penitencia com compaixão dizendo não haver no mundo motivos nobres para pecar, mas caso houvesse certamente o amor seria um desses.
– Capitu! – Ela murmura, recordando o seu apelido de infância tantas vezes pronunciado com carinho pelo seu amado.
Num último gesto ajoelha-se diante do singelo altar quase desfalecida: – Bentinho… Ela sussurra – Bentinho, meu amor…  E finalmente descansa em paz…