Como pururucar um porco sem sujar a panela – Os segredos do chefe

Eu nunca soube ao certo quando ele falava sério ou estava sendo irônico. Geralmente embolava as duas formas, literal e metaforicamente, numa coisa só, vertendo-as ao seu bel prazer. Demorei um tempinho fingindo me acostumar aos seus sarcasmos. E, uma coisa ficou bem clara para mim, a de que ele jamais conseguira me convencer a mudar meus planos. Ao final, ficaria mesmo pra mim a incômoda impressão de não ter aproveitado dele o suficiente a não ser aquela minha dívida impagável. Fora crucial envolver a dívida na nossa relação… Num valor dez vezes superior àquele que ele devia ao meu pai, quando dera aquele calote fatídico, liquidando a ambos, e no mesmo ato, credor e dívida e, como se costuma dizer por aí, com estes, “num efeito dominó”, sofremos os revezes eu e a minha mãe. Mas, isso ocorrera há tempos, e, embora a nossa sutil e mesquinha relação fosse coisa breve, apliquei-lhe, e por feliz ironia pra mim, a sua própria lição de juntar pontos de vista ambíguos numa mesma sentença. Sabia-o já há tempos, através dos “disse-me-disses” próprios de bairros, tratar-se mesmo de um sujeito violento, e, também, carismático e esotérico. Com tantos predicativos e denotativos singulares, simulei interesses afins para me aproximar dele.

Teria eu, então, bolado uma estratégia greco-romana. Mas, a coisa se dera até de forma bem mais fácil do que eu pudesse supor e em pouco tempo éramos como carne e unha; eu, unha, ele carne… Muitas carnes e banha.

Como sou sujeito dado às curiosidades urbanas e conhecido nas redondezas por gostar de artes em geral – assim por dizer, meio repórter meio escritor de suspenses – fazia e faço dos meus prazeres, ofício. Curto as artes plásticas e a literatura, nutrindo uma peculiar preferência pelo grotesco. Numa bela manhã de outono, numa praça pública, uma atividade coletiva de pinturas… Cuidei para que os participantes, na maioria, fossem de artistas de minha convivência e conveniência. Conseguimos fosse aquele evento patrocinado por ele, que, como sabido por todos, nutria vontades paradoxais, pois, era aficionado por filosofia antiga – à grega, numa paixão adquirida desde menino. E lhe era tamanha a tal veneração a ponto de dar nomes às crianças: nos meninos, Parmênides, Heráclito, Pitágoras e, enfim, de Sócrates, ao filho caçula; e, Héstia e Atena, nas filhas… Sabia quase tudo sobre os grandes filósofos gregos; sabia, também, muito sobre o churrasco grego! É que a gastronomia era outra de suas preferências existenciais. Era o que socialmente se chama de “um bom gourmet”.

Para que eu me destacasse diante dele, em meio a tantas boas telas produzidas e expostas ao ar livre, fora necessário babar-lhe os ovos e pegá-lo em seu “calcanhar de Aquiles”. Sim! Exaltei-lhe a vaidade filosófica ao lhe retratar à óleo numa boa tela, pintando-lhe o busto com pompas e circunstâncias socráticas. E a coisa toda dera tão certo que o quadro fora alocado logo na entrada de seu “palácio” propositalmente exposto para que todos o pudessem ver, tanto do vasto quintal quanto da rua. Logo, não tardaria em lhe fazer de um tudo e, também, já lhe dever uma soma vultosa e já transformada em coisa impagável. Estava eu, em bom jargão popular, comendo em suas mãos gordas que eu fazia questão de beijar sempre que ele necessitasse se esforçar em estapear as faces de algum pobre coitado que lhe fizesse uma desfeita qualquer.

Talvez nem fosse por generalidades, mas, por não serem assim tão visceralmente próximos, ao seu primeiro e, talvez, mais apreciado prazer e de não combinar muito com as outras práticas, assim tão elevadoras e sublimes, que, a exceção da filosofia de guerra, tinha ele pela agiotagem e milícia as práticas padrões complementares de sua vã existência. Ao fim de tudo, como já dito, a misturada de ciências se embolava a todos esses rituais líricos e sádicos numa coisa só, a sua própria razão de ser. Gostava de ouvir árias e Los Panchos com a mesma devoção de maestro ao articular no ar uma batuta invisível, com as mesmas mãos gordas que tocavam um violino quase tão bem quanto manuseassem as pistolas automáticas, uma em cada mão! E ele sempre fiel aos próprios conceitos dúbios, declamando as suas máximas filosóficas, enquanto batia ou matava alguém. Tudo aquilo lhe era como vício. Eu, sempre solícito e amável, sabia muito bem lhe beijar! Simplesmente como um cão lambendo o dono.

Houve um burburinho no bairro, a filha Héstia faria quinze anos e já estava com todo o fogo. Como se até ali já não houvesse acumulado motivos suficientes, haveria a festa da debutante a nos motivar à feitura do velho e bom churrasco grego.

O preparo do bólido carnoso deve ser feito na véspera e há aquela fórmula especial com certos ingredientes secretos. Eu soube dias antes como selecionar e preparar um belo porco – e assim fora feito: escolhi um especial, com quase dois metros e altura por um de largura; carnes tenras, gordas, suculentas. Tudo feito nos conformes… Perfeito! E passei aquela madrugada em claro…

Enfim, raiou o grande dia. Avistava-se uma verdadeira romaria se dirigir àquela famosa mansão. Fora ornada e cercada de pórticos gregorianos a se entender como o grande portal de Partenon; ao centro um inoxidável grill envidraçado revelava em seu interior o imenso espeto de carnes sobrepostas, rodopiando-se, tostando-se, derretendo as carnes a escorrer gorduras platônicas umas sobre as outras…

Passaram-se algumas horas até que eu decidisse ligar para a aniversariante lhe comunicando que chegaríamos mais tarde; disse-lhe que estávamos relaxando e navegando… Que começassem os festejos sem nós. Sem muitas delongas e, encorajados pelos rumores de estômagos vazios e insensíveis, serviram-se todos os convivas e às fartas…

Enquanto isso, a bordo daquele veleiro de sugestiva denominação “Creta”, singrando suaves ondas em alto mar, como já havia terminado de despejar as vísceras, ossos e as partes mais duras do gordo… “Seria, enfim, alimento útil para peixes grandes e iguaria pras sereias!”- pensava alto com os meus botões, enquanto seguia assistindo on line, através da câmera secreta instalada no olho esquerdo do retrato pintado naquele quadro, as imagens daquele banquete nefasto transcorrendo lá no quintal da mansão. E, não tardaria aquele grosso presunto giratório ir se desfazendo e minguando até restar na haste metálica somente alguns resíduos esponjosos e rançosos que ainda teimavam em queimar e expelir, de vez em quando, fumaceira e labaredas trepidantes… “De tão tenra e apetitosa iguaria, fora consumida até os ossos!” – Segundo teria declamado filosoficamente Parmênides, lambendo os dedos.

Eles lá e eu cá, saboreando uma bela salada fria, já que sou vegano e, desde muito cedo aprendi aquilo que todo bom filósofo está careca de saber: “A vingança é prato que se come frio…”