O que nos contam os mortos?

E lá estava ela em seu leito de morte, como se fosse despertar a qualquer momento. Mostrava a todos aquele seu habitual semblante hermético, porém, ali, tão sereno quanto jamais a tinha visto em vida. Parecia mesmo dormir um sono tranquilo. As pálpebras estavam entreabertas e deixavam parte das negras pupilas à mostra, como a me zelar eternamente. Sim, ela parecia guardar aquele mesmo antigo olhar, num misto de timidez e serenidade, de que tanto me acalmava e, agora, sem deixar transparecer qualquer dor, apenas uma aparente nostalgia em qual, de certa forma, parece lhe apagar o brilho, algo como um eclipse. Aquele mesmo brilho que já me pareceu eterno, estava levemente sombreado. Sim! Fora mesmo aquele um sorrisinho tímido de adeus e uma proposital alegria estampada em sua face inerte sugerindo a simples e enigmática metáfora da sua vida ao me amar incondicionalmente… Éramos tão parecidas!

Houve quem dissesse sobre o encerramento de um ciclo de honestidade e hombridade peculiares à falecida e que se fazia necessário o descanso eterno, num discurso medido e bem articulado, embora curto e empolado, com o orador terminando em algo que não me lembro bem, mas lembro-me sim de suas expressões faciais, as sobrancelhas erguidas em arcos, ao declarar o derradeiro “descanse em paz!”  E houve, também, quem se chegasse sorrateiramente sem jamais tê-la conhecida em vida e saísse com a melhor das impressões, pois de fato ali estava um defunto bonito de se ver. Eram parentes de outros funerais que aconteciam simultaneamente naquelas capelas contíguas.

O cortejo fúnebre ocorrera pela manhã e, seguindo pelas alamedas do cemitério, chegamos até o jazigo perpétuo da família, onde aqui realmente se encerrava um ciclo, pois ela era a última de sua geração e, ali, escrevia o seu nome na pedra de mármore. Acima, num hiato de quase uma década e meia, a inscrição mortuária de meu pai, tão sóbria quanto fora a sua existência – talvez ele tenha sido o mais feliz dos homens, vivendo sempre como uma sombra dos outros. Era o que costumava dizer, assim como a coisa mais certa da vida é a morte; e os fatos vividos, bem ou mal, são dívidas impagáveis. Óbvio, eu repensar sobre a minha vã existência! Então, um simples questionamento existencial ainda insistia em me incomodar, sobre “o que nos falam os mortos?” – Ora, que grande bobagem! Não nos dizem nada, pois defunto não fala, não pensa… simplesmente segue apodrecendo até virar somente ossos ou cinzas… Pó e ponto, nada mais!   

Era como uma parábola prosaica. Uma filosofia tão frágil quanto crucial. Viver sem dogmas, morrer com dogmas. E aqui está a ironia de toda uma vida. Era aquela a décima segunda inscrição sepulcral naquela página mortuária. Outras lápides em sua volta denunciavam histórias banais de seus eternos moradores. Acima de um túmulo carcomido havia uma estátua de um anjo, diria ainda mais carcomida, o que me fez recordar certa passagem alucinógena, sobre a visita de um anjo na forma de um cachorro. Mas as sepulturas são apenas construções vazias, moradias sem habitantes. Eis aqui um despropósito visceral que toda a tecnologia ainda não modificou em nossas existências, como um crucial equívoco para a grande máquina voraz resolver, já que os cerimoniais são cada vez mais distorcidos, que a bem da verdade são paradoxos eternos: quantas famílias morando nas ruas, embaixo de pontes, enquanto mausoléus luxuosos guardam memórias? Mas ao homem cabe todo o paradoxo, eis que a nossa origem é associada ao acaso…

Passaram-se alguns meses e lá estava eu em minha auto-Penitência. Pois é, desde quando me predispus a visitar o seu túmulo e lhe levar flores, num firme propósito em tentar apaziguar minhas velhas culpas pela escassez de visitas em vida, convivendo, em carma, com os dilemas cruciais ainda ribombando em minha mente, revendo-a na memória e em fotografias cruas, ouvindo-lhe cada vez menos, até que não nos reste nada mais a ser dito.