Sol, areia e som

(para ler calmamente, com voz suave)

Consegui ouvir a voz deles havia poucos meses. Aquele lugar escuro com pouco espaço pra me movimentar, no qual eu me alimentava por um tubo e me sentia amarrado mesmo assim era confortável. Tornava-se melhor e mais agradável quando ouvia-os cantar.

Ao passar dos dias aprendi a diferençar as vozes menos agradáveis. Algumas chegavam perto de mim até quando eu dormia para falar de
coisas sem sentido. Preferia a voz de uma mulher que falava pouco. Muito pouco. Mas era essa voz que ouvia todos os dias. Sublime. Cantarolava melodias árabes muçulmanas e orava próximo de mim.

Uma voz masculina também vinha ao meu local de ser e estar. Era mais comum aquela presença no período da noite. Timbre rouco. Pausado.
Calmo e de poucas palavras. Sentia segurança ao ouvi-lo.

Afundei.

Senti que dormi mais de um século e quando acordei pude notar que tudo não passara de consequências dos meus atos. Estava ali, como
paciente, agora conseguindo observar a luz entrar pela janela do quarto que antes era sempre escuro.

Lá estavam eles: o homem vestia uma túnica negra e alguns detalhes coloridos e um chapéu vermelho. A mulher toda coberta de roupas e tecidos coloridos e belos.

Então me recordei: estava em território inimigo. Tinha 33 anos, era um soldado norte americano capturado num confronto contra terroristas
afegãos. Passei tanto tempo em coma que mal conseguia me recordar do grito desesperadamente aterrorizado pela dor que senti ao ter minha perna arrancada por uma mina terrestre. E eu me perguntava o porquê daquele povo não ter me deixado ali para morrer.

Não importava mais. Consegui discernir um som de uma Mesquita ao fundo. Convocando para a terceira oração do dia. E o inusitado: a senhora estendeu uma esteira no chão e fez sua oração ali mesmo. Ao meu lado. Meu coração se encheu de esperança e minhas lágrimas ecoaram um grito de liberdade nunca antes sentido no meu peito.